O menino do Crato

O que há em comum entre um barquinho soltando fumaça no alto da Ponte Metálica; um bastão gigantesco em pleno calçadão da Av. Beira-Mar, próximo à feirinha; três cones prateados em frente à Catedral de Fortaleza e os quadrados que geram uma ilusão de óptica em frente à Universidade Federal do Ceará (UFC), no Pici? Essas são apenas algumas das principais obras de Sérvulo Esmeraldo espalhadas por Fortaleza, dialogando com o cenário iluminado da Cidade.

Nascido em meio à paisagem interiorana, Sérvulo foi se descobrindo artista. Sua obra versa com a pintura, a gravura, a escultura e a ilustração. Ele credita a natureza como responsável por tudo o que aprendeu. A plenitude da fazenda que o acolheu nos seus primeiros anos de vida no Crato é até hoje mote para suas observações sobre o mundo. Ali, em meio ao roçado e aos cavalos, passou a confeccionar seus primeiros brinquedos - já os protótipos de grandes e pequenas obras que estampariam paisagens Ceará afora.

Arte pública
Intelectual, Sérvulo estudou em Fortaleza, São Paulo e Paris. Por onde passou, embebeu-se de conceitos estéticos até encontrar na arte pública, de acesso livre e que dialoga com o ambiente, uma de suas identidades. Suas esculturas e quadros, além da capital cearense, também podem ser apreciadas em São Paulo, Rio Branco (no Acre) e outras inúmeras cidades de que sua memória já nem dá conta.

Durante a conversa com O POVO, que aconteceu no aconchego de seu lar, nas idas e vindas de suas reminiscências, ele resgatou as origens e alguns dos momentos mais marcantes de sua trajetória. Confira abaixo, os principais trechos da entrevista.

O POVO - Em primeiro lugar. Qual a origem do seu nome? É um nome diferente e é seu nome de batismo?

Sérvulo Esmeraldo - Sim. Sérvulo era um amigo do meu pai. Esmeraldo é sobrenome mesmo.

OP - Em que momento o senhor começou a fazer suas obras?

Sérvulo - Cresci na fazenda. Criança mesmo, eu já fazia meus brinquedos com papel, madeira, com umas tiras de bambu. Pedia para algum adulto cortar os pedaços de madeira e depois eu montava meus brinquedos. Eu também já desenhava muito. Foi aí que comecei.

OP – E a xilogravura, como ela surgiu na sua vida?

Sérvulo - Eu era jovenzinho e meu pai trouxe pra mim uma publicação que se chamava Xilogravura no Brasil. Mostrava tudo da área que estava sendo produzido no Brasil pós-guerra. Então ele me explicou como eram feitas aquelas gravuras e resolvi fazer também. A primeira que fiz era a imagem de um homem segurando uma enxada.

OP - A paisagem interiorana era sua principal fonte de inspiração?

Sérvulo - Nosso pensamento é muito ligado ao que nos envolve, isso é natural. O ambiente em que a gente vive é importante na nossa formação. Tudo aquilo acabou influenciando na minha forma de viver, naquilo que faço.

OP - Em que momento o senhor decidiu ser artista?

Sérvulo - Eu não decidi nada, foi a natureza que decidiu.

OP - Corrigindo: em que momento o senhor se percebeu artista?

Sérvulo - Desde o primeiro desenho, já percebia que gostava daquilo. Como nunca houve intervenção da minha família, fui me interessando cada vez mais.

OP - Ainda na adolescência, o senhor saiu do Crato rumo a Fortaleza. Já era com intuito de fazer algum curso específico, de conhecer outros artistas?

Sérvulo - Eu também não decidi sair do Crato. Na verdade, eu fui expulso do colégio em que estudava porque eu pensava e lá era proibido pensar. (risos) Era um colégio católico. Numa noite conversei sobre um assunto com meus colegas e o padre, que não vou citar o nome, ficou sabendo no dia seguinte.

OP - Qual o assunto?

Sérvulo - Não me lembro. Mas lembro que durante o sermão na igreja o padre falou muito mal de mim. Eu não fui à missa, mas meus primos me contaram. No dia seguinte, pedi um cavalo ao meu pai e fui falar com o padre, tomar satisfação. Eu disse: “O senhor está me proibindo de pensar?”. Ele respondeu com grosseria: “Cale a boca, seu boca suja!”. Aí respondi com mais grosseria ainda. Fui expulso e fiquei proibido de estudar por quatro anos, mas minha avó, Julieta Brígido Cordeiro, aposentada dos Correios, enviou um pedido ao Getúlio Vargas para que eu pudesse voltar a estudar. Ela era uma mulher de força e de ação. Então ele autorizou, mas só poderia estudar em Fortaleza. Então fui estudar no Lyceu do Ceará.

OP - Aqui, o senhor passou a fazer parte da Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP), teve contato com Aldemir Martins, Inimá Pádua, Antônio Bandeira. O que isso representa na sua carreira?

Sérvulo - A SCAP estava precisando de uma renovada, então chamaram três novos artistas: eu, Zenon Barreto e Goebel Weyne. Éramos os mais jovens. Nos reunimos e começamos uma nova fase na SCAP, mais interessada na arte contemporânea. Lá foi uma escola porque antes eu trabalhava copiando coisas de revistas. Lá eu comecei a ter experiências criando obras com mais identidade porque os scapianos eram interessados no mundo, lá ficávamos sabendo de tudo do que acontecia na Europa.

OP - Nessa época, o senhor conheceu o pintor suíço Jean-Pierre Chabloz, que passou a ser seu tutor. O que isso representa no seu estilo?

Sérvulo - Na verdade, eu o conheci no Crato, no meio da feira. Vi que ele desenhava as pessoas e fiquei encantado. Ele morava em Fortaleza, era casado com uma brasileira. Então fui ficando curioso, conversei com ele. Ele era muito culto, com ampla formação em artes plásticas. Comecei a desenhar meus familiares e ele passou a palpitar nos meus trabalhos. Por muito tempo ele fez análise dos meus trabalhos, como um professor.

OP - O senhor participou da 1ª Bienal Internacional de São Paulo, em 1951. Logo depois passou a residir em São Paulo. Mudar para lá era realmente uma vontade para um homem tão telúrico? Fortaleza não comportava todos os seus objetivos?

Sérvulo - Fui para São Paulo para fazer o último ano do colegial. Depois passei para Arquitetura na Universidade Federal de São Paulo (USP), mas abandonei o curso porque queria me dedicar às artes plásticas, à pintura. Lá conheci Aldemir Martins. Nos reuníamos em bares, conheci vários críticos, artistas. Fui para lá porque era possível estar em contato com muita gente influente.

OP - E como o senhor começou a trabalhar no jornal Correio Paulistano?

Sérvulo - Justamente nesses bares, acabei conhecendo pessoas do jornal. Eu não bebia, ia mais para conversar, trocar experiências. Então me convidaram para trabalhar lá. Passei a desenhar diariamente sobre o tema do dia. Eles (os jornalistas) me davam textos, eu os lia e criava uma ilustração. E assim foi por três anos. Eu também já fui jornalista profissional. (risos)

OP - Em 1956 o senhor fundou o Museu da Gravura, no Crato, sua terra natal. Esse retorno era no intuito de contribuir com seu lar, com seu berço?

Sérvulo - Não. Eu tinha muitos amigos lá. Eram amigos interessados na arte, por isso resolvemos um dia criar o museu. A gravura é muito presente por lá e é um meio interessante de expressão. Basta esculpir na madeira, não custa nada e gera obras de muita qualidade. Mas não foi para dar retorno, foi simplesmente porque lá não tinha absolutamente nada. Hoje não tenho ido muito por lá.

OP - Depois de realizar mostra no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), o senhor viajou para a Europa com bolsa do governo francês. Como o senhor conseguiu essa bolsa?

Sérvulo - Minha tia era professora de francês. Meus primos já tinham estudado fora, então ganhei todos os livros e ela foi me ensinando. Nós conversávamos em francês. Um dia, o embaixador francês no Brasil viu meus trabalhos em São Paulo e me sugeriu que tentasse a bolsa. Preenchi uns documentos, fiz a solicitação e enviei ao Rio de Janeiro, que era a capital do País na época. Em Paris estudei litografia na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts (Escola Nacional Superior de Belas Artes). Estudei lá por dois anos.

OP - Na Europa, o senhor estudou a gravura de Albrecht Dürer e teve orientação de Johnny Friedlaender. Como foi essa experiência na Europa? Que novos conceitos o senhor aprendeu?

Sérvulo - Nessa época passei a fazer a gravura em metal, que é diferente da gravura em madeira. A gente cobre a chapa com um verniz, depois faz o desenho, depois mergulha em um ácido, insere a tinta nos veios e depois carimba. Dá mais trabalho. O Johnny Friedlaender foi meu professor, depois passei a trabalhar no ateliê dele. Aí comecei a estudar a arte cinética, obras que têm uma dinâmica de movimento. Vou mostrar para você entender. (apontando um quadro na sala de casa). São quadros e objetos movidos pela eletricidade estática. Esse não está funcionando porque o clima aqui é diferente, mas é só passar a mão e essas pecinhas se mexem e fazem um barulho.

OP - Sua esposa, Dodora Guimarães, é curadora de artes plásticas. São trinta anos de união. Em que ponto a relação de vocês influencia na sua criação?

Sérvulo - Não tem tanta influência. Cada um tem sua vida. Somos casados, mas no trabalho é cada um no seu espaço.

OP - Como é que está sua rotina hoje? O senhor ainda tem produzido suas obras?

Sérvulo - Atualmente eu tenho um ateliê nos fundos de casa. Lá produzo minhas obras. Eu faço o projeto e tenho um assistente, o Haroldo. Ele trabalha comigo há 22 anos. Quer dizer, ele me aguenta há 22 anos.

OP - O senhor tem muitas obras espalhadas por Fortaleza, algumas estão em estado de deterioração. O que o senhor pensa sobre isso?

Sérvulo - É dever do Governo do Estado e da Prefeitura a manutenção dessas obras. Não fui eu quem colocou as obras lá sozinho, fiz com apoio deles, é preciso cuidar. A manutenção tem que ser não só sobre as minhas obras, mas sobre qualquer obra de arte que esteja na rua.

OP - O que o senhor pensa sobre a produção em artes visuais feita hoje no Ceará? Tem acompanhado essa produção?

Sérvulo - Sim. A produção local tem altos e baixos, mas acho que agora estamos em um momento bom. Temos grandes produtores de arte da nova geração e não é só na escultura, mas também na pintura, nas outras artes.

OP - Quando o senhor olha para trás e vê o menino que nasceu no Crato, migrou para Fortaleza, depois São Paulo e finalmente a França, como se sente? Quem é o Sérvulo Esmeraldo hoje?

Sérvulo - Não se assuste: sou o menino do Crato, não mudei nada. Aprendi muita coisa e fui assimilando tudo, os conhecimentos estão todos embutidos, mas sou a mesma pessoa.

DANILO CASTRO
REPÓRTER

Fonte: O Povo



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