Sítio Caldeirão, palco de um dos maiores massacres do Brasil, deverá ganhar Memorial no Crato

Há 84 anos, no dia 11 de maio de 1937, as Forças Armadas e a Polícia Militar do Ceará, sob ordem do Governo Federal, invadiram a comunidade do Caldeirão da Santa Cruz, em Crato. Parte dos seus moradores foram mortos e os sobreviventes expulsos de suas terras. Seu líder, o beato José Lourenço, e seus seguidores fugiram. Este sítio, localizado a 33 quilômetros da sede do município, que foi palco de um dos mais importantes episódios da história cearense, deverá ganhar um memorial, como planeja a Secretaria de Cultura do Município.  

“É uma dívida que os gestores do Cariri, especialmente do Crato, têm. Precisamos criar uma referência, um espaço de conservação e difusão do que foi o Caldeirão. Não se pode deixar que essa memória se perca”, justifica o secretário de Cultura de Crato, Amadeu de Freitas.  

O projeto da pasta é que, dentro do espaço do Caldeirão, seja feita um circuito, conhecendo os patrimônios que ainda permanecem de pé, como a Igreja de Santo Inácio de Loyola e as ruínas da casa do beato José Lourenço. 

"Quem tem interesse na história do Caldeirão, tem interesse de ver o local. A relação com o ambiente, com aquele espaço. Tem poucas ruínas, mas ir ao local é outra sensação."
Amadeu de Freitas, secretário de Cultura de Crato

Investimentos
Para isso, a Secretaria trabalha para conseguir recursos. “Isso depende de investimento, mas é possível. Além disso, precisamos melhorar as condições de acesso até lá”

Lá, vizinho à Igreja, há um prédio construído pela prefeitura na última década que serve de apoio durante a Romaria, em setembro, e que poderá ser aproveitado. “Talvez seja adaptado. Vamos tentar uma parceria com a Secretaria de Cultura do Estado e a Urca [Universidade Regional do Cariri]. A academia deve ter uma contribuição muito grande, porque um projeto desse requer uma pesquisa”, acredita o gestor.  

Esse levantamento deve ter início ainda este ano, enquanto o memorial depende de recursos. Além disso, Amadeu apresentou a proposta, no último mês de abril, à Secretaria de Cultura do Estado. “A pandemia trouxe muitas dificuldades e temos priorizado, no momento, garantir condições para nossos artistas populares e fazedores de cultura neste momento complicado”, explica. 

O massacre do Caldeirão
A história do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto começou no final do século XIX, quando o agricultor José Lourenço Gomes da Silva, peregrino paraibano, migrou até Juazeiro do Norte e se tornou um beato de confiança do Padre Cícero. O sacerdote arrendou uma terra do Sítio Baixa Dantas, em Crato, onde José e os flagelados que chegassem ao Cariri pudessem prosperar na agricultura comunitária e na fé. E assim aconteceu até 1926, quando as terras foram vendidas.   

Depois disso, o Padre Cícero cedeu uma de suas propriedades na fazenda conhecida como “Caldeirão dos Jesuítas”, local que teria sido esconderijo dos jesuítas no século XVIII, onde recomeçam o trabalho comunitário com base na religião. Liderados pelo beato José Lourenço, lá, a produção era dividida igualmente e o excedente era vendido para compra de outros produtos, como remédios e querosene. 

A seca de 1932 é lembrada, tanto na literatura como na oralidade, como uma das mais perversas que castigou o Nordeste na primeira metade do século XX. Foi esse fenômeno de escassez de água e alimento impulsionou o crescimento do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, que chegou a receber 1.700 pessoas.    

Temendo que a comunidade se tornasse um movimento messiânico, o Governo Federal, ordenou, em setembro de 1936, a primeira invasão à comunidade, que foi dispersada por forças policiais. Em 11 de maio de 1937, dessa vez foram as Forças Armadas, que bombardearam e destruíram a comunidade. Nove anos depois do episódio, José Lourenço morreria em Exu, vítima da peste bubônica.  

“Foi uma experiência importante te como enfrentar as dificuldades da seca, do Semiárido e de forma coletiva, partilhada”, exalta o secretário de Cultura do Crato, Amadeu de Freitas. “O Caldeirão foi massacrado por pura ignorância, mas é uma referência de como a sociedade pode ser organizar de forma diferente”, completa. 

Em setembro, a comunidade recebe milhares de visitantes na chamada Romaria da Santa Cruz do Deserto. Sua 20ª e última edição aberta ao público, em 2019, reuniu cerca de 3 mil pessoas. O evento foi criado por entidades eclesiais de base, pensando em resgatar a história de uma comunidade “de certa forma abafada”, confessou o padre Vileci Vidal, um dos idealizadores. 

O sacerdote acredita que é necessário, além do memorial, a criação de projetos que sejam convenientes com as comunidades “e sejam uma expressão daquilo que foi o Caldeirão”, adverte Vileci. Ele enumera que já houve outras iniciativas da administração pública, mas que não tiveram continuidade com o passar das gestões. “Houve até uma tentativa da Universidade Federal do Cariri administrar o espaço para ser uma área de pesquisa e fomento de experiências agroecológicas e isso tem tido dificuldade”, pontua. 

Mesmo assim, elogia a intenção de criar o memorial para valorização da experiência que foi o Caldeirão da Santa Cruz. “Essa comunidade tem uma força de vínculo pela fé, que vai determinando o histórico, no sentido produção de grande escala e organização que se dá na convivência em comunidade. Essa história não pode morrer”, finaliza Vileci.  

Criação de Unidade de Conservação estagnou 
Há alguns anos, o poder público e pesquisadores discutem transformar o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, em uma Unidade de Conservação (UC) e, futuramente, em um geossítio que integre o Geopark Araripe. Seu tombamento nacional também já foi pensado. A primeira iniciativa aconteceu em outubro de 2017, com a realização do seminário “Caldeirão da Santa Cruz do Deserto: uma construção coletiva”, que contou com a presença do secretário de Meio Ambiente do Ceará, Artur Bruno.   

O primeiro passo foi a conclusão do georreferenciamento, realizado pela Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Territorial de Crato (SEMADT), concluído em 2018. O atual titular da pasta, Stephenson Ramalho, que assumiu a gestão no início deste ano, conta que está retomando a discussão junto com o conselho e a criação da UC está no planejamento.  

Uma das coisas que facilita este trabalho é que a área, composta por cerca de 70 hectares, pertence à Prefeitura de Crato. O principal empecilho, hoje, é o tipo de unidade que será criada. A tendência é que o Caldeirão se torne um Monumento Natural de Interesse Cultural e Ambiental, classificação destinada para a preservação de lugares singulares, raros e de grande beleza cênica, permitindo diversas atividades de visitação.

“Com a pandemia e a demanda reprimida, ainda não conseguimos avançar. Uma das nossas preocupações não é só criar, mas manter. É que sejam sustentáveis financeiramente. Só criar é arriscado e pode causar conflitos locais. Precisamos retomar o diálogo com a população e trazer algo bom para quem se mantém lá”, acredita Ramalho.  

Já a criação do novo geossítio, que seria dentro de uma parcela destes 70 hectares, também estagnou. De avanço, teve a conclusão do inventário geológico, exigido pela Organização das Nações Unidas para Educação Ciência e Cultura (Unesco). “O levantamento inicial feito pela Prefeitura não atendeu as necessidades do projeto de criação. Falta fechar o perímetro e um trabalho de altimetria. Solicitamos que fosse complementado. O Município se mostrou empenhado”, detalha Nivaldo Soares, diretor-executivo do Geopark Araripe.  

A criação do geossítio só se dará após a criação da UC, que dá maiores garantia de conservação aquele espaço. A URCA tem apoiado o trabalho de diagnóstico e elaboração dos relatórios exigidos. “Quando veio a pandemia, a coisa parou total. Para a gente, é interessante a UC. Espero que haja uma retomada para estar com o projeto todo pronto. Faltam ainda esses detalhes do mapa”, acrescenta. 

Por Antonio Rodrigues

Fonte: Diário do Nordeste

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