Infância de reis: As vozes das crianças fazem coro à tradição de reisados no Cariri

Cícero Davi ainda era uma criança de colo quando começou a acompanhar os cortejos do Reisado Mirim Estrela Guia, em 2015, nas ruas de Juazeiro do Norte. Agora, com apenas três anos de idade, ele já sai na linha de frente do grupo, com a imponência de príncipe, ao lado princesa Sofia. Juntos, eles são os mais jovens a riscar o chão da rua São Pedro – no Centro da terra do Padre Cícero – com as espadas da folia de reis. E fazem coro a uma tradição que chegou ao Brasil com os portugueses, e segue sendo transmitida de geração a geração. 

Aos 47 anos, Mestra Lúcia, a avó do pequeno príncipe, é a principal responsável por comandar as atividades do grupo desde o dia 15 de setembro de 2000 – além de um outro, de Guerreiras – e por trazer a família para brincar de reis desde a primeira infância. É que ela também começou a brincar cedo, aos sete anos de idade, com a Mestra Margarida. A ideia de dar continuidade à tradição já lhe acompanhava desde aquele período. “Eu dizia: quando eu ficar velha, eu vou botar um grupo. Mas eu quero botar um grupo só meu, com criança, com velho, com o que vier! Mas eu vou botar um grupo só meu! E eu consegui!”, comemora. 

No começo, Mestra Lúcia conseguiu reunir cerca de 52 crianças do bairro Frei Damião, mas hoje são apenas 16. “Eram todas lá do bairro – meus irmãos, meus filhos sempre brincavam. Hoje brincam meus netos”, explica. Além de Cícero, ela também leva Miguel, de apenas oito meses – e que esse só não desfilou trajado na 19ª Mostra Sesc Cariri “porque a menina não conseguiu terminar a roupa dele a tempo”. Ela atribui a redução do número de brincantes a razões como a falta de apoio financeiro do poder público e mesmo a postura de algumas famílias, que preferem não ver os filhos na brincadeira. 

“A maioria das crianças, a mãe não deixa brincar o reisado, não deixa tocar zabumba. Mas quando a mãe não deixa, termina as crianças virando marginais, outras se prostituindo, outras no mundo da droga. Eu acho que elas querem que dê dinheiro o reisado. Reisado não dá dinheiro. Reisado é uma tradição, que vem passando de geração em geração. Dá dinheiro assim, num evento desse do Sesc, nos trabalhos da Secretaria de Cultura, que é pouco, mas se não tem dinheiro, as mães não deixam brincar”, desabafa a mestra, que trabalha no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) de Juazeiro, e acompanha alguns casos de perto. 

A situação não a desanima. “Mulher, eu tenho uma alegria no meio deles, é o melhor pra mim, eu tando no meio deles, eu tô no céu”, conta. É com o salário mensal que ela mantém as atividades. “Abaixo daquele Pai, eu é quem movo meu grupo”, afirma, referindo-se a Deus, enquanto chama Cícera Dayane, 11, Michelly Silva, 13, e outras crianças para falar. As duas meninas atuam como embaixadoras, puxando o Reisado Mirim Estrela Guia. 

“Na primeira vez que eu fui, achei muito legal. Aí fui ensaiando, ensaiando, fui brincando, aí depois chamei minha mãe”, conta Cícera Dayane. Maria Aparecida Miranda da Silva, 28, a Preta, acompanha a filha nos ensaios e apresentações, às quartas, sábados e domingos, e fica feliz com a desenvoltura dela, com quem também aprende a dançar e cantar. As garotas sonham alto. “Queremos ser mestras!”, afirmam, assim como Luan da Silva, 13, que faz o papel de Catirina no grupo e treina desde pequeno em casa com o mesmo intuito. 

Velhos meninos 
No Reisado São Francisco do Mestre Dodô, há quem diga que quer brincar até chegar aos 100 anos. É o caso de Everton Lucas de Oliveira Sousa, 12, e de Levy Félix da Silva, 10. Primos, os dois eram os únicos jovenzinhos entre outros onze brincantes que se apresentavam no Terreiro da Mestra Margarida. O pai e avô de Levy também participam do grupo. “É tudo em família”, comemoram. 

Os olhares admirados das crianças, mesmo durante a apresentação, têm um destino certo. “Eu quero ser jogador de espadas. O Joãozinho, irmão do mestre, é nossa referência. Ele que ensinou nós a dançar, ele que ensina nós a bater espada. A gente não tem espada, mas ele disse que vai fazer”, conta Everton com um maracá na mão, tal como Levy, que recentemente se mudou de São Paulo. “Eu acho que o reisado é uma cultura de Juazeiro, só tem em Juazeiro”, pensa, ainda que a manifestação não seja exclusiva do cariri cearense. 

A impressão de Levy se deve a alguns aspectos diferenciais explicitados pelo Mestre Dodô. “Nosso grupo é muito fraco de espada, porque aqui no Juazeiro, eles têm uma mania feia, brincam pra brigar! Pai corta filho, filho corta pai. Nossa espada é uma espadinha simples, pra não machucar ninguém, porque uma espada daquela é uma faca também. Não tem gume, inclusive, as nossas eu tenho licença pra andar com elas, mas ali corta. Se a pessoa der uma pancada, quebra o osso, corta a perna. E precisa ter cuidado com as crianças”, alerta o Mestre que já comanda seu grupo há 18 anos. 

Uma outra característica parece permear o Reisado São Francisco. Há quem participe somente depois de mais velho, o que torna menos significativa em termos de quantidade a presença das crianças. Além de Everton e Levy, o grupo só tem mais uma criança brincante. “Na nossa família é o que acontece, voltar depois de velho, porque quando começa a namorar, fica só pensando em namorar”, avalia o mestre, citando como exemplo um neto de 15 anos que já não participa com tanto afinco das atividades. 

Ele se preocupa com o processo de transmissão, e reconhece que, quando há incentivo financeiro, a participação é mais efetiva. “Se eu fizer muitas ligações, botar duas, três vezes crédito de operadora, eu tiro um pouquinho a mais dos cachês. Na verdade, essa foi a primeira vez que eu tirei um pouquinho mais pra mim, só pra pagar aquilo”, admite, sobre a participação de seu Reisado na 19ª Mostra Sesc Cariri. “Mas, no nosso grupo, do maior ao mais pequeno, todo mundo ganha a mesma coisa. Ninguém não é ninguém sozinho”, finaliza. 

ROBERTA SOUZA
ENVIADA ESPECIAL

Fonte: Diário do Nordeste

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