"De volta à escravidão". PSDB propõe lei para os trabalhadores rurais não receberem mais salário

Votada a reforma trabalhista, a Câmara dos Deputados se debruçará agora, com apoio do governo, sobre mudanças nas leis do trabalho específicas para os trabalhadores rurais. A ideia é adotar o mesmo espírito do projeto aprovado na madrugada de quinta-feira: não tratar o trabalhador como um "coitadinho" e restringir o poder da Justiça do Trabalho e Ministério Público do Trabalho sobre estabelecer novas normas ou interpretar as existentes.

"Existe preconceito muito grande da Justiça do Trabalho com o trabalhador rural", diz o presidente da bancada ruralista, deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), autor do projeto. "As leis brasileiras e, principalmente, os regulamentos expedidos por órgãos como o Ministério do Trabalho são elaborados com fundamento nos conhecimentos adquiridos no meio urbano, desprezando usos, costumes e a cultura do campo", afirma.

A proposta permite que as empresas não paguem mais seus funcionários com salário, mas mediante "remuneração de qualquer espécie" - o que pode ser simplesmente fornecer moradia e alimentação-, aumentem para até 12 horas a jornada diária por "motivos de força maior", substituam o repouso semanal dos funcionários por um período contínuo, com até 18 dias de trabalho seguidos, e a venda integral das férias dos empregados que moram no local de trabalho.

"É uma proposta mais perversa que a própria reforma trabalhista", critica o coordenador da bancada rural do PT, o deputado Beto Faro (PA). Entidades de defesa dos trabalhadores rurais, Contag e Contar afirmam, em nota técnica que será distribuída aos parlamentares, que o projeto "fere de morte normas constitucionais e infraconstitucionais relativas à saúde e segurança".

As modificações ficaram de fora do parecer do deputado Rogério Marinho (PSDB-RN), relator da reforma trabalhista, por um acordo da bancada ruralista com o governo - são 192 itens que deixariam o projeto muito maior e poderiam aumentar as resistências. "Alguns pontos da reforma aprovada já ajudam as empresas rurais, como o fim das horas in itinere, redução do tempo de almoço por acordo coletivo, as novas formas de contrato. Mas é claro que, pela especificidade do campo, merece uma legislação a parte", diz Marinho.

Segundo Leitão, a articulação política do governo e a Casa Civil foram consultadas e apoiaram o acordo. O projeto será debatido numa comissão especial da Câmara que deve ser instalada nas próximas semanas - apenas a oposição não indicou os integrantes. Na justificativa do projeto, o tucano defende que as alterações vão modernizar a relação no campo, com aumento dos lucros, redução de custos e geração de novos postos de trabalho.

O projeto, protocolado em novembro, reproduz parte da reforma aprovada pela Câmara. Os acordos coletivos entre sindicatos e empresas poderão prevalecer sobre a legislação, acabará o pagamento de horas in itinere (de deslocamento em veículos da empresa, onde não há transporte público), institui a jornada intermitente (em que o funcionário pode trabalhar em horários específicos do dia, quando houver demanda, sem uma jornada contínua).

Um dos pontos que causam maior preocupação aos sindicatos rurais é a possibilidade de que o trabalhador não seja mais pago apenas com salário. No campo, muitas vezes a remuneração ocorre com parte da produção ou cessão de pedaços de terra para que o empregado possa produzir. "Há um imenso risco de regularizar esta modalidade ou outras, como em troca de moradia e alimentação", dizem Contag e Contar.

Há regras no texto para limitar essa possibilidade, como dizer que a cessão de moradia para o empregado não integra o salário e que será descontado no máximo 20% do salário mínimo por moradia e 25% pela alimentação. Mas, para as entidades, a mudança sobre a remuneração "de qualquer espécie" abre brecha para este tipo de pagamento.

O projeto também revoga a norma do Ministério do Trabalho sobre as regras de segurança e saúde no campo (NR-31) e define, na opinião dos contrários à proposta, regras genéricas e que retrocedem à atual regulamentação. Acabam, por exemplo, com a obrigação de que a empresa mantenha equipamentos de primeiros socorros no local e com o exame demissional caso o funcionário tenha realizado exame médico ocupacional ou perícia no INSS nos últimos 90 dias.

Também deixa exclusivamente com o Ministério da Agricultura a fixação de regras sobre a manipulação de agrotóxicos, excluindo os Ministérios da Saúde e do Trabalho, acaba com a obrigação de descontaminar os equipamentos de segurança ao fim de cada jornada e permite que maiores de 60 anos utilizem os chamados defensivos agrícolas.

O texto ainda autoriza que, sempre que a jornada normal for interrompida por "motivo de força maior ou resultante de causas acidentais" - com uma máquina quebrada-, o trabalhador poderá ser obrigado a trabalhar até quatro horas a mais para "recuperação do tempo perdido". Essas horas extras serão devolvidas em até um ano como folga ou pagamento.

A jornada também poderá ser ampliada para até 12 horas diárias, mesmo sem interrupção, por "motivo de força maior, causas acidentais ou ainda para atender a realização ou conclusão de serviços inadiáveis". O trabalho aos domingos e feriados, hoje limitado por portaria do Ministério do Trabalho a laudos técnicos que indiquem a necessidade de execução de serviços nesses dias, também estará liberado.

Os autores do texto argumentam que o trabalho no campo tem suas peculiaridades e que situações alheias à vontade da empresa, como mudanças bruscas no tempo, podem afetar a colheita e é preciso haver maleabilidade. Já para os críticos, está se abrindo brecha para ampliar forçadamente a jornada e repassar o risco do negócio para os empregados.

É autorizado ainda que o repouso semanal remunerado seja substituído por um período de descanso contínuo, para "melhor convívio familiar e social", caso o empregado more em local distinto do emprego. Os dias seguidos de trabalho poderão chegar a até 18. Já os que morarem no local de trabalho poderão vender integralmente suas férias, bastando previsão no acordo coletivo ou individual.

A empresa também só terá que disponibilizar infraestrutura adequada nas chamadas frentes de trabalho (áreas de trabalho móveis e temporárias), como banheiro e espaço para alimentação, quando atuarem mais de 20 empregados. Segundo ruralistas, hoje a Justiça trabalhista chega a exigir esse suporte até quando há apenas um funcionário deslocado, encarecendo os custos.

Os chamados contratos de safra serão ampliados para outras possibilidades, abarcando inclusive atividades de pecuária, e poderão ser firmados de forma sucessiva. Para a Contag, é uma forma de mascarar como contratos determinados um vínculo indeterminado - e fugir, assim, dos custos de demissão, como a multa de FGTS e aviso prévio.

O coordenador da comissão de Relações do Trabalho da Confederação Nacional da Agropecuária (CNA), Cristiano Zaranza, diz que o projeto acaba com a "indenização duplicada", paga na demissão dos que trabalham no período de determinada safra agrícola. Quando um safrista é demitido, além da multa de 40% do FGTS, também recebe outra indenização prevista antes da Constituição de 1988 e que é proporcional ao tempo de serviço.

O acerto da bancada ruralista é que o projeto trate também da futura contribuição previdenciária dos agricultores familiares e pescadores artesanais, que será de até 5% do salário mínimo (cerca de R$ 50 mensais), de acordo com o parecer do deputado Arthur Maia (PPS-BA) sobre a reforma da Previdência. O texto tem até dois anos para ser aprovado, do contrário valerá a versão que está na proposta do governo.

Fonte: Valor

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