Vírus transmitido por insetos pode ser confundido com dengue

O véu cobria toda a cabeça da moça. Ela não suportava a luz. Tinha ainda febre, dores pelo corpo. Um final infeliz para as férias numa praia do Nordeste de uma adolescente de Ribeirão Preto, em São Paulo. Chegou ao hospital como um caso de dengue. Saiu com o diagnóstico de febre do Oropouche, uma síndrome viral pouco conhecida, dolorosa e transmitida por insetos. O caso é um dos dois primeiros do Brasil registrados fora da Amazônia e evidencia a necessidade de vigilância sanitária para síndromes virais novas, como o zika, que chegou sem alarde e agora causa epidemia de microcefalia.

A febre do Oropouche é pouco conhecida, mas não incomum. Especialistas alertam que ela pode representar até metade dos casos que se pensa serem dengue no Brasil. É mal notificada. O Oropouche causa surtos na Amazônia brasileira, incluindo Maranhão e Tocantins. Com epidemias recentes no Amazonas e no Pará, esta última com 30 mil casos.

Considerado um dos maiores especialistas internacionais no Oropouche, o professor Eurico Arruda, do Departamento de Biologia Celular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, destaca que a doença não tem chamado a atenção porque, até agora, tem se limitado à Amazônia, onde vilarejos inteiros adoecem quando acometidos por um surto. Do ribeirinho ao político mais importante, todo mundo fica doente, acrescenta o pesquisador.

— Os médicos precisam estar atentos. E o Brasil necessita desenvolver um protocolo para síndromes virais, e não apenas dengue, zika e chicungunha. Estamos certos que de 40% a 50% dos casos suspeitos de dengue não são de fato dengue. Médicos e população têm que ser alertados — afirma Arruda.

Os casos se contam aos milhares no Brasil.

— Contando todos os casos no Norte, a febre do Oropouche é a segunda febre arboviral mais frequente no Brasil, depois da dengue. Oficialmente, desde os anos 60 já foram registrados mais de 500 mil casos no país. Mas devem ser muito mais, porque casos isolados da doença também ocorrem, e não somente surtos, e estes não são notificados ou publicados. Além disso, muitos casos que se pensa serem dengue são, na verdade, Oropouche — salienta.

Isso acontece por dois motivos, explica Arruda. O primeiro é que muitas vezes o diagnóstico é clínico. E, como a dengue é mais comum, o médico aposta nela. O segundo é que o exame sorológico pode ser positivo para dengue numa pessoa que está com Oropouche. Isso pode manter o Oropouche não reconhecido, observa o geneticista Mariano Zalis, diretor do Laboratório Progenética Pardini, que trabalha no desenvolvimento da aplicação de um teste genético para o zika.

A febre do Oropouche causa sintomas semelhantes aos da dengue e, como esta, não tem tratamento específico. Porém, costuma causar mais dores nos olhos e intensa fotofobia. Que se saiba, o Oropouche não é letal, mas causa de três a cinco dias de intenso sofrimento. É comum também a volta dos sintomas após alguns dias da cura inicial, e em torno de 10% dos pacientes desenvolvem meningite.

O diagnóstico preciso dessas viroses é importante para a saúde pública. Por exemplo, uma vacina contra a dengue não surtirá qualquer efeito contra o Oropouche, e somente a redução de casos suspeitos de dengue não servirá como parâmetro de sua eficácia, pois esses podem ser, por exemplo, devidos ao Oropouche.

Como dengue, zika e chicungunha, o Oropouche também é uma arbovirose; portanto, transmitido por insetos. Mas, no caso do Oropouche, o principal vetor é o maruim ou borrachudo, que na verdade é uma pequena mosca hematófaga, muito comum em regiões próximas a florestas e manguezais de quase todo o Brasil. São abundantes nas florestas do Rio e nas lagoas da Zona Oeste, por exemplo.

Porém, em testes de laboratório, mosquitos do gênero Aedes se mostraram capazes de transmitir Oropouche, o que só aumenta a necessidade de sua vigilância, destacam cientistas como a professora de Virologia Clarissa Damaso, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Temos os vírus, os insetos transmissores, os animais hospedeiros, o manejo inadequado das florestas onde estão os micro-organismos e uma população vulnerável. Some-se a isso um fluxo cada vez maior de pessoas entre estados e países. O Brasil tropical da biodiversidade é também a terra da tempestade viral perfeita.

— O zika evidenciou um problema que se arrasta há anos com a dengue. Somos um país tropical, vulnerável à emergência de doenças novas, e precisamos estar o tempo todo alertas a isso. Boa vigilância sanitária é fundamental para evitar a propagação desses vírus. Quando se instalam, é muito difícil erradicá-los — alerta Clarissa, que integra o comitê da OMS de controle dos últimos estoques de varíola (a única doença erradicada no mundo) e faz estudos de biodefesa no Brasil.

Eurico Arruda alerta que há casos de Oropouche adquiridos fora da Amazônia, inclusive no litoral do Nordeste, o que significa que o vírus está circulando em outras regiões brasileiras. No caso específico da moça adquirido numa praia do Nordeste, chamaram a atenção de Eurico Arruda o fato de os testes serem negativos para dengue e de a paciente ter fortíssima dor nos olhos e estar completamente fotofóbica, características marcantes do Oropouche. O diagnóstico de Oropouche foi confirmado, e a paciente ficou bem, mas o caso representa um alerta importante. A dor forte nos olhos é uma característica frequente em vítimas da febre do Oropouche, mas a doença pode surgir sem esse sinal.

— Essas febres costumam ter algumas características mais relevantes, mas elas não são específicas, e não dá para basear o diagnóstico só nisso. Assim, exantema, isto é, manchas avermelhadas costumam acompanhar infecções pelo zika; dores e inchaços nas articulações são marcas de chicungunha e Mayaro; dores nos olhos lembram Oropouche. Mas nenhuma dessas características é obrigatória, e por isso o teste de laboratório é essencial — frisa ele.

Outro sinal de que o vírus circula por outras partes do país, inclusive no Sudeste, foi a descoberta de um pequeno sagui infectado em Arinos, Minas Gerais. O Oropouche foi isolado do sagui pelos pesquisadores Pedro Vasconcelos e Márcio Nunes, ambos do Instituto Evandro Chagas, em Ananindeua, no Pará.

Há pouco estudo sobre o Oropouche, como, aliás, acontece com a maioria das doenças emergentes. Num estudo piloto em Manaus, um grupo com o qual Arruda colabora pode comprovar como a doença é subnotificada.

— O estudo com pacientes de síndromes febris agudas em Manaus, fora de um surto de Oropouche, mostrou que 20% de 631 pacientes com febre e negativos para malária e dengue tinham Oropouche — explica o cientista.

O impacto socioeconômico é grande.

— A dor nos olhos e nos músculos do corpo é muito forte. A pessoa não suporta a luz e não consegue se levantar da cama. A doença dura em média até cinco dias. E um terço dos pacientes sofre uma recaída dias depois. Veja o peso disso na sociedade, em perda de dias trabalhados — frisa Arruda.

Ele acredita que a febre do Oropouche esteja subnotificada no país. Opinião semelhante tem pesquisadores como Clarissa Damaso.

Fonte: O Globo

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