Digitalização de arquivos da ditadura descobre trabalhos inéditos de Djavan, Jorge Mautner e outros artistas

Uma equipe de 12 pesquisadores do Arquivo Nacional desde o início do ano está levando a cabo um projeto de valor imensurável para a memória da música popular brasileira: a organização e digitalização de todo o acervo musical submetido à censura. Perdidas entre cerca de 77 mil documentos do Serviço de Censura e Diversões Públicas, arquivados pela Polícia Federal de 1968 a 1988, período em que vigorou a censura no regime militar, estão letras esquecidas de artistas como Djavan, Aldir Blanc e Jorge Mautner,entre outros registros valiosos aos quais O GLOBO teve acesso com exclusividade.

Custeado pelo BNDES, o projeto prevê a disponibilização de todo esse acervo ao público pela internet a partir do ano que vem, quando será concluído, facilitando a realização de inúmeras pesquisas acadêmicas, documentários e biografias. No garimpo, os técnicos encontraram as jusitificativas para as proibições de Aldir Blanc (“Antes e depois”, censurada por apresentar “conteúdo erótico”) e Jorge Mautner (“Papoulas e arco-íris”, vetada pelo conteúdo “alienado, extraterrestre”), além de pareceres curiosos sobre letras de Egberto Gismonti e Geraldinho Carneiro (“Corações futuristas”) e Nelson Motta (“Boa viagem”).

— Todas as histórias já conhecidas sobre músicas censuradas fazem parte deste acervo, que é de extrema importância para a História do país — diz Marcus Alves, coordenador do departamento responsável pela digitalização. — É o caso da letra de “Cálice”, por exemplo, ou das canções que Chico Buarque assinava como Julinho da Adelaide para burlar a censura. Mas agora, mexendo nestes documentos mais a fundo, reorganizando muitos dossiês que estavam separados, refazendo os protocolos, tivemos a chance de fazer um novo pente fino no material. E sempre surgem documentos curiosos e inéditos.

Djavan estava louco para gravar o primeiro disco. Em meados de 1974, o alagoano de 27 anos que se apresentava como crooner em boates cariocas compunha vertiginosamente para ter muitas canções para mostrar ao produtor musical Aloysio de Oliveira, que já havia lançado nomes como Tom Jobim e, então na Som Livre, decidira apostar nele. Quando chegou a 60 músicas, Djavan gravou-as em fitas cassete e entregou todas a Aloysio. O produtor escolheu 12, e assim nasceu o álbum “A voz, o violão, a música de Djavan”, a estreia formal do músico, em 1976.

Entre as 48 canções que tinham ficado de fora, no entanto, estava uma das preferidas de Djavan. Intitulada “Negro”, seria a única em toda a sua carreira que abordaria explicitamente o racismo. Algum tempo antes, de passagem por São Paulo, ele tinha sido preso pelo fato de ser negro. Foi o próprio policial quem falou: “Vai preso porque é preto”. A raiva virou música, mas a música virou só uma lembrança distante, assim como todas as outras. Foi um dos grandes arrependimentos da sua carreira: não ter pedido as fitas de volta ou ter feito uma cópia para si. Nunca mais soube delas.

Até a última quinta-feira. Foi quando o músico finalmente reencontrou a letra de cinco canções daquele montante, entre elas “Negro”, 41 anos depois de tê-la composto. Surpreso, arriscou uma melodia sobre os versos — “Negra é a luz que se fechou no ar/ Negro, lágrimas, correntes/ Que identificam a gente/ De maneira má/ Negro de coração forte/ Negro eu, negro você, vida negra” — e já cogita até regravá-la.

— Isto aqui é um presente, estou muito emocionado mesmo — comoveu-se Djavan, lamentando o fato de a letra ter sido rejeitada por um dos censores justamente pelo conteúdo racial. — Eu nem sabia que havia tido músicas censuradas! O que deve ter acontecido é que o Aloysio escolheu algumas canções daquelas 60 que eu mandei a ele, submeteu à censura as que considerou prováveis para o disco, como toda gravadora fazia à época, e lá elas ficaram arquivadas. Estou impressionado, que volta que as músicas deram para retornar às minhas mãos 40 anos depois... Fiquei muito chateado que o Aloysio não a tenha escolhido para o disco, puxa, eu queria ter falado disso no meu primeiro álbum. Naquela época, eu estava sofrendo muito preconceito racial, no Rio, sozinho, sem conhecer ninguém. Sofria rejeições para entrar nos lugares, tenho essa lembrança forte até hoje, e logo depois do episódio de São Paulo. Na época, o preconceito racial chegava a mim bem mais forte do que chega hoje, claro, depois da fama. Além de tudo, ela tem uma boa letra.

A história de “Negro” guarda ainda outro mistério: a letra passou por três pareceres de censores diferentes, como era praxe na época. Um a vetou, com a justificativa de que “traz à tona problema racial”, mas outros dois a aprovaram. Apesar do carimbo definitivo liberando a canção, ela nunca mais voltou às mãos de seu autor. As outras letras de Djavan encontradas pela equipe tiveram caminho semelhante: “Joana”, “Para comigo fazer”, “Como posso saber” e “Desgruda”.

— Eu me lembro desta, “Joana”. Eu estava muito influenciado por Dorival Caymmi. “Com a tarde vem Joana, meiga, pura, simples, triste/ Guarde seus olhos mulher/ Joana, faça de conta que nada tem a ver/ com o peso que há dentro de você” — cantarola o músico, divertindo-se com a avaliação da própria obra, décadas depois. — Esta outra aqui é muito boa também (refere-se a “Como posso saber”), mas esta é terrível (sobre “Desgruda”, que tem versos já com indícios djavânicos, como “Não se pode pensar, não se pode parar, na mulher de qualquer um/ Mas a sopa vem depois/ no amor que outrora foi de dois/ tem que ser devagar/ para não machucar/ o coração de qualquer um/ se a bronca bate à porta/ é sinal que vai ter zumzumzum”).

Em 1969, aos 23 anos, em meio ao clima dos festivais da canção, Aldir Blanc compunha como quem bebe água. Ainda trabalhava em hospital, como psiquiatra, e não tinha escrito nenhum de seus clássicos “O bêbado e a equilibrista”, “O mestre-sala dos mares” ou “Resposta ao tempo”, mas já conseguia classificar canções, uma atrás da outra, nos concursos. Como ele mesmo diz hoje em dia, “naquela época, eu me achava”.

Foi quando escreveu a letra de “Antes e depois” para uma melodia de um de seus parceiros à época, César Costa Filho. A letra evocava o antes e depois de uma relação sexual com belos versos, como “Antes de amar eu procurava tua boca, tua voz ficava rouca e tu deitavas no meu peito/ Durante o amor, pedias suplicante que eu não fosse só amante, e te amasse como a derradeira vez e fizesse do meu ser o teu/ Depois de amar, adormecias qual menina, desmaiada e pequenina, que mentiu que era mulher/ E nessas horas, eu te olhava adormecida, pressentindo a despedida, te fazendo cafuné”.

— Quem era louco para gravar essa música era o Taiguara, que achava linda a canção. Era uma época muito boa, a gente compunha quatro horas por dia, em reuniões na casa em que morava o Gonzaguinha... — comenta César Costa Filho, feliz por reencontrar a canção, 45 anos depois de tê-la composto.

A música foi classificada — mais uma! — no Festival Fluminense da Canção, que seria transmitido pela TV. Para isso, Aldir e César deviam antes submetê-la à censura, como era praxe nos anos de chumbo. Mas para desalento dos dois, que só queriam cantar o amor, a letra foi censurada. E, assim como a de Djavan, que também só queria cantar o racismo que enfrentava, foi mais uma inédita que ficou todo esse tempo escondida no Arquivo Nacional, encontrada agora pelos técnicos da instituição, durante o processo de digitalização do acervo. Junto à letra e aos pareceres de veto, acharam também uma pérola: uma carta de Aldir Blanc pedindo a liberação da música, que tampouco comoveu os censores.

O parecer do primeiro era curioso: “Bonitos versos. Pena que não possa aprovar. Puro erotismo”. A avaliação do segundo seguia: “Texto para maiores de 18 anos, portanto proibido para gravação em televisão”. O terceiro dava fé: “Vetada por ferir as normas de censura”.

Quando soube do veto, cravado no dia 30 de maio de 1970, Aldir apelou ao recurso que mais o favorecia: escreveu uma carta, com a caligrafia de médico que era, mas daqueles que se esforçavam para se fazer entender. Afinal, já era o “ourives do palavreado”, como diria mais tarde Dorival Caymmi.

A missiva é uma verdadeira peça literária. Ao defender a pureza da canção, ele apela até a Jesus Cristo: “Declino vossa atenção para o fato de que o erotismo está presente em todos os anúncios de TV, em todas as publicações de imprensa, sendo também parte relevante da literatura e da poesia mundial. Não obstante solicitamos a Vs. Sra. considerar que este caminho não é novo em música brasileira, como para exemplificar ‘Helena, Helena’, (refere-se a uma canção de Taiguara) na frase “com seus homens de renome”.(...) Consta do próprio punho do censor a frase “bonitos versos” em reconhecimento de que nossa ideia foi falar de um amor que não se fez nascer, que não é imoral, que foi praticado por nossos pais e pregado por Cristo em sua frase: ‘Crescei e multiplicai-vos’”.

— Acho que só fiz dois requerimentos desse tipo. Eu tinha uns 20 anos e me achava... O gozado é que a própria famigerada censora Dona Solange, apesar de a censura ser mantida, veio ao balcão, naquele “castelinho” da Praça XV onde depois instalaram o MIS, dar “parabéns pela beleza da letra”. Fabuloso, né? — comenta Aldir, emocionado por rever a música e a carta, das quais não se lembrava mais. — Depois, a Censura mudou para o Catete, envolvia policiais e a barra era mais pesada. Era preciso ir lá “conversar”. Foi quando aconteceu, e é fato já pra lá de sabido, a famosa história de censurarem “Navegante negro”, quando um policial negro me disse que o que estava pegando era a palavra “negro”... O truque era botar um título aleatório que não gerasse associações com outros títulos já censurados. Passamos (Aldir e João Bosco) para “O mestre-sala dos mares” e a censura, burra como toda censura, comeu mosca...

Em fevereiro de 1972, Jorge Mautner submeteu à censura a letra da canção “Papoulas e arco-íris”, que tinha versos como “Você é tudo que eu preciso, você é a chave de um perdido paraíso/ Tua alma foi bordada num veludo furta-cor/ com papoulas e arco-íris, num tapete persa voador/ Você fica voando, lá pro fundo de um continente, onde a gente é só a gente, num delírio de amor/ Você é tudo que eu preciso, você me leva pelo negro labirinto”. Foi demais para a censura, que vetou a música. A justificativa é hilariante: “O título nos leva a interpretações conhecidas: papoula (ópio) e arco-íris (sonhos coloridos). Além do mais, durante toda a letra o autor se mantém em constante vibração extraterrestre com frases usuais entre os ‘viajantes’, como ‘perdido no paraíso’, ‘longínquo Oriente’, ‘delírio de amor’, ‘negro labirinto’”. Mautner gostou tanto de reencontrar o documento que pretende gravar a música em seu próximo disco:

— Reencontrei a letra há algum tempo, quando comecei a mexer nos meus arquivos para fazer meu site e vou gravá-la. Mas este parecer eu não conhecia. “Vibração extraterrestre” é demais, não? — diverte-se o músico.

Em 1974, o poeta Geraldo Carneiro fez um poema que foi musicado por Egberto Gismonti. Intitulado “Corações futuristas”, dizia, em um trecho: “Dançar a ciranda, dançar a ciranda do sono, dançar a ciranda do sono perdido na noite”. Encaminharam a música à censura, e o texto do primeiro parecer tinha justificativas peculiares: “Seus autores pertencem à escola das teorias do futuro, porém de maneira estranha e confusa; usando de hermetismo, revelam-se descrentes, prevendo um mundo onde se pulará bandeira porque o sono fora perdido, e em meio à sombra e cachaça guardar-se-á segredo afogado. Considerando-a niilista e, tendo em vista que tal doutrina significa aniquilamento, portanto anti-social, sugiro que a mesma seja vetada”

Carneiro não fazia ideia da existência do documento:

— O parecer não tem pé nem cabeça. Fiquei orgulhoso por ela me considerar niilista, péssima influência para as gerações vindouras. Ela achava que eu era o Albert Camus de Madureira! Seu surrealismo revela o terror que vivíamos no princípio dos anos 70, lembro de ir diversas vezes à censura... Seria cômico se não fosse trágico — conta Carneiro, lembrando que o título da canção batizou um disco de Egberto, lançado em 1976.

Outro documento encontrado foi uma carta enviada por Nelson Motta, tal qual fez Aldir Blanc, pedindo a revisão da censura à letra de sua música “Boa viagem”, feita em parceria com Luiz Carlos Sá. No requerimento, datado de 5 de julho de 1971, Motta tentava convencer os censores:

“Fiz esta letra dedicando-a a cada estrofe a pessoas que amo e respeito: minha mulher, meu amigo e minha irmã. (...) Trata-se, óbvia e dignamente, da grande viagem da vida, do salto para o futuro, da vontade de cada dia assumir os riscos maravilhosos de uma vida e imprevista. Trata-se da viagem que leva para a vida. A todos que gosto, desejo boa viagem. Aos que falta coragem para o amanhã, tudo fica como antes, para eles há viagem. Nem boa nem má. Para eles só há estação. É tudo. Boa viagem!”

— Eu nunca ia lembrar disto! É um documento muito curioso, pois foi a primeira vez que pedi para liberarem uma música censurada. Eu tinha 26 anos, era uma música hippie, folkzinha, com esse clima de acampamento... Fico impressionado com a minha capacidade de mentir. É claro que a “viagem” que eu falava era de ácido lisérgico... — comentou Nelson Motta, surpreso.

Fonte: O Globo

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