Como Luizão, deu aula por 5 anos; após se declarar Luiza, foi demitida


Uma das lições mais bonitas que a estudante Pietra Costa, 16 anos, recebeu na escola foi testemunhar a transformação do seu professor de filosofia em uma mulher. “Foi lindo”, lembra a aluna do Colégio Anglo Alphaville, que, em novembro do ano passado, fazia parte de uma das turmas que viu o “professor Luizão” dizer diante dos alunos: “O tio Luiz na verdade é tia Luiza. Eu sou transexual”.

Naquele gesto, os estudantes receberam uma aula extracurricular sobre identidade de gênero e superação de preconceitos. Pietra conta que os alunos acolheram a novidade e sentiram “uma admiração intensa” por Luiza, “pela coragem de se comprometer com tudo aquilo que poderia encontrar para ser quem ela é e por permitir que participássemos daquele momento”.

A mesma admiração que já sentiam pelo velho Luizão, que, muito antes de trocar a barba pelo batom vermelho, adorava mexer com a cabeça de seus alunos. “Luiza foi de longe uma das melhores professoras que tive. As coisas que aprendi com ela são imensuráveis, desde Sócrates até lidar com a minha vida e com o meu ser, minha existência”, diz outra aluna, Marina Sahyoun, 15 anos.

Nos dias de hoje, ou de qualquer tempo, é de se imaginar que uma escola fosse valorizar uma professora capaz de ensinar “coisas imensuráveis” e “tudo que se pode encontrar para ser quem se é”. Mas parece que o Colégio Anglo Leonardo da Vinci, onde Luiza Coppieters, 35 anos, lecionava desde 2009, dando aula nas cinco unidades do grupo (em Alphaville, Granja Viana, Osasco, Taboão da Serra e Vila São Francisco, todos na Grande SP) — não viu com esse olhar.

Em março deste ano, Luiza ficou sabendo que a escola havia reduzido suas aulas e cortado seu salário em dois terços. Ela conta que caiu em depressão, saiu em licença médica para tratamento e tentou o suicídio duas vezes. Em 29 de junho, veio o golpe final: a escola anunciou que, após seis anos de trabalho, ela havia sido demitida sem justa causa.

Luiza está convencida de que foi mandada embora por ter assumido sua transexualidade. “A única justificativa para minha demissão é a transfobia”, afirma.

“Problemas profissionais” 
O colégio nega que a demissão tenha sido motivada por preconceito e afirma que a motivação foi profissional, sem entrar em detalhes. “A demissão da professora Luiza foi decorrente de problemas de ordem profissional ligadas ao cotidiano de aulas, compromissos e relações éticas de uma escola. Infelizmente essas questões detalhadas não podem ser expostas publicamente em respeito à figura da professora Luíza e aos próprios trâmites internos da escola”, afirma Wagner Dias, coordenador de ensino médio da escola.

Ainda segundo o coordenador, em entrevista por e-mail, Luíza “desde maio deste ano ficou ausente da escola e, exceto quando solicitado, não fez aviso formal de seus problemas de ordem emocional”. Ele afirma que a escola “carrega em sua história uma opção clara pela valorização da diversidade humana”.

De ogro a mulher
Para Luiza, a perda do emprego foi um entre outros obstáculos que enfrentou após sua transição de gênero. Sair da posição de homem branco de classe média para a de mulher trans, conta, foi como “sair do topo da cadeia alimentar do capital e ir para o último lugar da escala”. Seu cotidiano passou a se povoar de medos e limites que muitos homens nem imaginam que existam, embora sejam bem conhecidos das mulheres.

Sair sozinho à noite para comprar um maço de cigarros no posto de gasolina, algo que Luizão fazia sempre, é um hábito que Luiza prefere evitar. Das vezes em que fez isso, ficou assustada com os olhares que recebeu e percebeu que era a única mulher naquele horário e local. Por duas vezes, já foi seguida por carros ao voltar a pé sozinha para casa. Se Luizão, ao sair na rua à noite, só tinha receio de ser assaltado, Luiza passou a lidar com o medo de apanhar e ser estuprada. “Comecei a perceber violências clássicas que as mulheres sofrem diariamente.”

Mas nenhum problema é capaz de fazer Luiza se arrepender da sua mudança, que veio lhe trazer uma paz como não conheceu ao longo das três décadas de angústia que viveu como homem, sem conseguir entender os próprios desejos. “Eu pensava: ‘eu gosto de mulher, então não sou viado’”, conta. “Era um desejo confuso de ser e ter. Eu queria ter as mulheres lindas, mas ao mesmo tempo queria ser como elas.”

Formado em filosofia pela USP em 2004, adotou na faculdade um visual de “ogro barbudo e cabeludo” que levou para a vida adulta. “Eu era assim para me esconder, dos outros e de mim”, avalia hoje. Tudo mudou em 2012, no dia em que foi a um restaurante japonês com um amigo e viu um casal de meninas numa mesa ao lado. “Fiquei transtornado. Percebi que não queria estar ali com elas, eu queria ser uma delas.” A chave virou quando concluiu: “Sou lésbico”.

A metamorfose começou com Luiza entrando em supermercados às 2 da manhã, atrás de lingeries para usar escondida em casa, e prosseguiu com o corte da barba a laser e o tratamento hormonal. Durante quase dois anos, foi uma trans no armário. Pintava as unhas de vermelho em casa, mas ao ir para a escola removia tudo com acetona e ainda usava jaleco para esconder os seios que começavam a aparecer.

Só no final de 2013 Luiza contou o segredo aos professores do Anglo. De início, aceitaram bem. Mas, a partir daí, Luíza começou a perder espaço na escola.

Mulher de meio expediente 
No começo de 2014, Luiza perdeu os grupos de debates que coordenava. No segundo semestre, conta que foi proibida de abordar assuntos de gênero e sexualidade na sala de aula. Logo ela, que vivia usando as diferenças entre homens e mulheres para fazer os alunos questionarem verdades estabelecidas e aprenderem a pensar. “Já que não tem preto aqui, vou falar de mulher, porque quero incomodar vocês”, costumava dizer na abertura do curso. E incomodava.

“Vocês sabiam que vão ganhar 30% a menos do que eles quando estiverem no mercado de trabalho?”, costumava perguntar às meninas. “Ele cutucava o que tinha de mais enraizado nos alunos e mostrava as contrariedades e hipocrisias de tudo aquilo em que estávamos imersos por sermos parte da sociedade”, recorda a aluna Pietra.

A professora manteve ao longo do ano a rotina de mulher de meio expediente, continuando a ser Luiz para os alunos. A revelação só veio em novembro, quando os alunos descobriram um perfil feminino que Luiza havia criado no Facebook. Muitos pensaram que fosse algum tipo de protesto contra o machismo. “O que é aquilo, professor?”, perguntaram. Mesmo com medo do que podia acontecer, Luíza foi em frente. Foi aí que respondeu: “O tio Luiz na verdade é tia Luiza. Eu sou transexual”.

“A reação dos estudantes foi muito positiva. Houve aceitação e respeito apesar do estranhamento de alguns poucos alunos no começo”, lembra a aluna Marina. Na saída de um dos colégios, Luiza conta que um aluno o abraçou e disse: “obrigado, professora”. Os estudantes passaram imediatamente a tratar a professora no feminino, disseram que podia vir com roupas femininas o quanto antes e, nas provas, riscavam os textos em que o nome dela aparecia como Luiz, escrevendo LUIZA por cima.

Após se revelar na escola, voltando para casa, à noite, pela Raposo Tavares, Luíza conta que teve a sensação de que seu peito se abria de lá “saía voando uma revoada de pássaros ou morcegos, sei lá”. Um mal estar que sempre havia sentido, um gosto cinza que morava dentro dela, foi embora. Lembrou de quando tinha cinco anos e pediu às estrelas cadentes da praia que a transformassem numa menina. “Eu pensava: foram 30 anos de um sonho que agora está acontecendo. As noites de insônia, as angústias, todos os dramas, tudo foi embora. Estou viva.”

Última lição 
Estava pronta para ser feliz, mas o mundo à volta de Luiza não iria facilitar. Diferente dos alunos, os pais não acolheram a novidade com tanto entusiasmo. “Uma grande parcela não aceitou e falou coisas do tipo ‘como ela vai dar aula agora?’, como se o fato dela ser mulher trans mudasse o intelecto que ela tem”, conta Marina. Bem que os adultos desta história poderiam aprender algumas lições com seus filhos.

No ano seguinte, vieram os cortes de quase 70% no salário e nas aulas. “Os caras foram me destruindo como professora”, conta. Desesperada, Luíza começou o ano letivo vendendo parte da sua coleção de livros, acumulada ao longo de anos, para pagar as contas. “No meu primeiro Dia das Mulheres, estou vendendo meus filhos”, escreveu no Facebook em 8 de março. Sentiu-se ainda pior ao perceber que nenhum professor lhe ofereceu apoio. “Aquele silêncio à minha volta me fez muito mal.”

Mergulhou na depressão e tentou suicídio duas vezes. Na primeira, tomou todos os antidepressivos que tinha em casa. “Descobri que não mata, só zoa.” Na segunda, passou quatro dias sem comer, enchendo-se de remédios para dormir, tentando morrer de inanição. Foi salva pelos amigos.

Ao ser demitida, estava tão deprimida que passou um tempo sem saber como reagir. “Não estava pensando direito. Achava que a culpa era minha”, lembra. Agora está decidida: pretende processar o Anglo por danos morais. “Vai ser importante não só para mim, mas para abrir jurisprudência para casos de transfobia no ambiente privado”, afirma. É uma lição que a professora pretende ensinar à escola.

Outro lado: Entrevista com Wagner Dias, coordenador de ensino médio do Colégio Anglo Leonardo da Vinci

Ponte – Por que Luíza foi demitida?
Wagner Dias – A demissão da professora Luiza foi decorrente de problemas de ordem profissional ligadas ao cotidiano de aulas, compromissos e relações éticas de uma escola. Infelizmente estas questões detalhadas não podem ser expostas publicamente em respeito à figura da professora Luíza e aos próprios trâmites internos da escola. No entanto, desde maio deste ano ficou ausente da escola e, exceto quando solicitado, não fez aviso formal de seus problemas de ordem emocional.

Ponte – A professora diz que a demissão foi motivada por transfobia. O que o Anglo tem a dizer a respeito?
Wagner – Ficamos surpresos com o motivo levantado pela professora, que talvez não tenha sido colocado nestes termos. Como mostrou matéria de Catraca Livre no ano passado, a professora estava bastante satisfeita com o ambiente de acolhida que recebeu de todos, alunos, professores e funcionários, quando expôs publicamente sua mudança.

Desde o momento em que procurou os responsáveis pelo andamento da escola, por volta do início do ano passado, foi criado um plano de acolhimento, que envolveria todos os membros do ambiente escolar. A professora inclusive participou de viagens de estudo do meio, comemorações e reuniões de pais, sem qualquer constrangimento.

Ponte – A escola recebeu pressões de pais ou funcionários para demitir Luiza?
Wagner – Sim, houve por parte de pais, mas em número muito menor do que imaginado por nós. E essa foi uma parte difícil pois alunos, professores, coordenadores e funcionários se manifestaram solidários à sua escolha. Quanto aos pais reticentes foram atendidos individualmente e tranquilizados quanto ao trabalho pedagógico e de formação de seus filhos.

Ponte – Como o Anglo vê as discussões sobre gênero em sala de aula?
Wagner – As discussões de gênero e outras ligadas às injustiças sociais são tratadas sem constrangimento em sala de aula, como a própria professora fazia sem que houvesse qualquer tipo de impedimento ou assédio moral. Nossa escola carrega em sua história uma opção clara pela valorização da diversidade humana e foram inúmeros os casos em que houve acolhida a estes casos e crítica contundente à qualquer tipo de conduta intolerante.

Ponte – Ao demitir uma professora trans, qual a lição que o Anglo acredita que está passando aos seus alunos?
Wagner – A escola não pretende dar lição alguma, por não se tratar de um problema de ordem trans, e sim de ordem profissional. São questões diferentes. O curso ministrado pela professora deveria ser mantido incólume a qualquer questão de ordem pessoal. O fato infeliz de sua demissão não carrega qualquer carga de oposição à sua opção transgênero, mas sim ao cumprimento de obrigações didático-pedagógicas.

(*) Reportagem publicada originalmente em PONTE.org

Fonte: Painel Acadêmico

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