Mulher que foi espancada até a morte por causa de boato na internet é enterrada

Ao som de gritos de “queremos justiça", a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, foi enterrada na manhã desta terça-feira no Cemitério Jardim da Paz, no Guarujá, litoral de São Paulo. Fabiane foi linchada por moradores do bairro Morrinhos no sábado, após ser confundida com uma suposta sequestradora de crianças para ritual de magia negra cujo retrato falado estava sendo divulgado na internet. A Polícia Civil ouviu nesta terça-feira o responsável pelo site “Guarujá Alerta”, que publicou a foto da suposta criminosa.

Cerca de 300 pessoas foram ao cemitério prestar uma última homenagem a Fabiane. O grupo cantou ao menos três vezes um dos cantos religiosos preferidos da dona de casa, que diz “meu advogado mora lá no céu. Verdadeiro e justo ele é sempre fiel. Meu advogado é Jesus!”.

- Vamos cobrar justiça. Mas não justiça com nossas próprias mãos, a justiça verdadeira, a justiça de Deus - disse um dos primos de Fabiane, que, na sequência, convocou uma “passeata pela paz” até a Praça Mário Covas, próximo ao cemitério.

Espancada enquanto segurava a bíblia
Amigos da dona de casa descreveram Fabiane como uma mulher dedicada à família e à igreja. Frequentadora da Igreja São João Batista, no mesmo bairro onde ocorreu o linchamento, ela foi espancada enquanto segurava uma bíblia, onde guardava fotos das duas filhas - de 12 e 1 anos.

Muito emocionado durante toda a cerimônia, o porteiro Jailson Alves das Neves, de 40 anos, ficou todo o tempo abraçado ao irmão e a um primo. Ao final do protesto, disse que não tinha condições de falar com a imprensa, mas agradeceu ao apoio de vizinhos, parentes e amigos:

- É uma amostra do amor que ela espalhou para amigos e parentes e toda a comunidade. Foi uma forma bonita de retribuir.

Amigos acreditam que as agressões começaram depois que Fabiane entregou uma banana que havia acabado de comprar para uma criança que estava na calçada. O ato teria sido mal interpretado por transeuntes. Ainda segundo familiares, os agressores não notaram que as fotos que estavam dentro da Bíblia que ela carregava eram de suas filhas.

Uma nova passeata ocorrerá no domingo às 10h.

Segundo a polícia, Fabiane apresentava problemas psiquiátricos - sofria de transtornos bipolares, alternando estados de agitação e depressão - e não consta qualquer ocorrência ou acusação contra ela. A Polícia também não confirma sequestro e morte de crianças em rituais de magia negra no Guarujá.

A polícia analisa imagens do vídeo feito por um cinegrafista amador no momento da agressão. Fabiane sofreu traumatismo craniano, além de outros ferimentos. Ela era casada e tinha duas filhas.

O advogado e amigo da família de Fabiane, Airton Sinto, disse que o “Guarujá Alerta” é culpado diretamente pela morte dela. Ele informou ao GLOBO que entregou às autoridades vídeos de populares feitos instantes após o espancamento e o nome de pessoas que teriam participado da agressão.

'Justiçamentos ganham potência lesiva com redes sociais'
Especialistas ouvidos pelo GLOBO dizem que o linchamento da dona de casa Fabiane é resultado da falência do sistema de segurança pública e da falta de credibilidade de parte da população nas instituições democráticas. Nesse caso específico, segundo o advogado Ariel de Castro Alves, membro do Movimento Nacional de Direitos Humanos e do Grupo Tortura Nunca Mais, a divulgação pela internet de boatos envolvendo supostos autores de um crime, além da rápida propagação, reúne um número maior de pessoas dispostas a “fazer Justiça com as próprias mãos”.

- Esse justiçamento acaba ganhando uma potência lesiva muito maior a partir da divulgação nas redes sociais. Antes, existia o boato espalhado boca a boca, que reunia um certo número de ‘justiceiros’. Com a internet, o boato se difunde de forma mais rápida e para um número maior de pessoas em razão dos vários compartilhamentos – salienta Castro Alves.

Para o advogado, episódios como esse são resultados da falência do Estado.

- Há uma falta de confiança na polícia e na Justiça, principalmente. Essas pessoas, então, resolvem fazer uma suposta justiça num julgamento sumário, na base do ‘ouvi dizer’. Não há o direito de defesa. Se parte direto para o justiçamento. Também não há lei, nesse caso, onde é instalada uma verdadeira barbárie, com justiceiros tão criminosos quanto os que eles dizem estar combatendo – diz.

Segundo o advogado, tanto os administradores da página que divulgou o boato quanto os que compartilharam a informação deveriam ser responsabilizados por coautoria na morte de Fabiane.

- Todos aqueles que promovem a incitação à violência também deveriam responder, com base no Código Penal. Incitar publicamente a prática da barbárie os torna coautores do homicídio – diz o advogado.

Para a socióloga Ariadne Lima Natal, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP), a agressão sofrida por Fabiane é um protesto de parte da população contra as instituições.

- O linchamento acontece à revelia das instituições públicas que existem – as polícias Militar e Civil, o Ministério Público, o Judiciário - para cumprir o processo legal que envolvem todos os trâmites até o cumprimento da pena. O linchamento é como um protesto que pula várias dessas etapas. É impossível fazer justiça sem o processo legal. Nesse caso, não há uma ação bárbara, irracional. Eles (os agressores) estavam ali conscientemente. É um crime.

Autora da dissertação "30 anos de Linchamentos na Região Metropolitana de São Paulo 1980-2009", Ariadne diz que existia picos de linchamentos nos casos estudados por ela quando um deles ganhava repercussão na mídia. Em relação às redes sociais, ela observa fenômeno semelhante.

- Na minha dissertação, analisei linchamentos divulgados pela mídia, uma vez que não há um levantamento oficial desse tipo de episódio. Cheguei à conclusão de que picos observados ao longo desses 30 anos na Grande São Paulo foram desencadeados por um caso de grande repercussão noticiado pela imprensa. Agora temos as redes sociais e vários casos noticiados de linchamento, começando com aquele do Rio (no Flamengo, quando um adolescente foi amarrado ao poste) e seguido de outros episódios semelhantes. De qualquer maneira, é provável que uma coisa reforce a outra no sentido da pulverização disso alcançar o imaginário popular como uma ação possível (linchamento) para a resolução de um conflito.

Fonte: O Globo



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