Entrevista com Dane de Jade: ´Toda política pública deveria ser uma política cultural´

Nós tivemos este ano uma edição singular em 15 anos de Mostra Sesc Cariri, com a retirada dos grandes shows e parte da programação do Crato. Como você, enquanto atual secretaria de cultura e idealizadora da Mostra, avalia o impacto e os desdobramentos dessa mudança?

É lamentável que num país onde travamos uma luta intensa para que o olhar para a cultura tenha um foco direcionado no intuito de reconhecermos que essa dimensão social é um fator de desenvolvimento mais importante até que o econômico, pois antecede a ele, tenhamos perdas num jogo que já é desfavorável. Os grandes projetos de cultura já são escassos e pelejam ano após ano para se justificarem necessários, viáveis e atraentes para o investimento quer seja público ou privado. O impacto ainda será melhor avaliado a médio e longo prazo e isso nos dá possibilidade de focarmos no que há de mais importante para nós, gestores de cultura, que atuamos no município do Crato: a necessidade de investirmos num projeto sério para a construção de uma política pública de cultura. Nesse aspecto, posso dizer que não esperava ser convidada para assumir a Secult Crato, mas tão logo aceitei me dispus a elaborar um projeto que alinhasse cultura e desenvolvimento social. Um projeto que foque a realização de ações culturais que resultem em transformação do ser humano, buscando propor para a população que olhe a cidade através da lente bela, crítica e reveladora das artes e do conhecimento cultural. Nesse sentido, começamos a agir de acordo com os parâmetros do Sistema Nacional de Cultura. Realizamos a III Conferência Municipal de Cultura, participamos da estadual e somos o município que está enviando o maior número de delegados para a Conferência Nacional. Nosso encontro com a classe artística e população em geral resultou numa das conferências com maior número de participantes tendo a presença do Secretário de Cultura do Ceará e de representante do Ministério da Cultura. Ainda temos trabalho para fazer e vamos continuar com essa ação de diálogo com a população dentro de um ciclo dinâmico de gestão compartilhada e formação contínua de gestores de cultura e cidadãos propositivos em nosso projeto político-cultural. De toda forma, a descentralização da Mostra com atividades de maior porte nos municípios do Cariri já era um objetivo necessário de um projeto que cresce e se propõe a ser regional.

Essa redução da programação veio acompanhada por um sentimento, por uma parte do público, de disputa Crato - Juazeiro, rixa que, acredito, não teve a ver com o ocorrido. Como é a relação da Secult Crato com o Sesc e em qual foi o ponto de discordância, ou o fato, que resultou na mudança?

Vejo que essa tal rixa não faz parte das reflexões e ações dos intelectuais, artistas, educadores e gestores que são comprometidos com o desenvolvimento do Crato e do Cariri como um todo. Creio que não devemos e nem podemos ressaltar isso, principalmente quando nos propomos a ser agentes do progresso das cidades e das pessoas que nelas habitam. O Sesc é parceiro da Secult e de várias outras secretarias. Nós tivemos o seu apoio em diversas ações que desenvolvemos, como o Dia de Reis, o carnaval, a Expocrato, o Agosto da Tradição, os lançamentos dos livros "A Delicada Trama do labirinto" e "Laboratório do Caos", o Dia Internacional da Animação e reconhecemos o papel fundamental desta e de outras instituições na difusão das artes, portanto temos que somar forças. Atualmente, a prefeitura está realizando um convênio para que os servidores municipais possam ter acesso aos serviços da instituição. Acredito que o Crato vive um momento onde diversos grupos e pensamentos estão procurando espaço para desenvolver ideias e isso gera uma pressão política que desvia o foco dos reais objetivos de um trabalho sério em prol da construção de políticas públicas. Tudo aconteceu de forma muito brusca e repentina e o prejuízo não pareia com o projeto da gestão municipal e muito menos com o da Secult. Espero poder tirar o melhor ensino dessa situação para trabalhar junto do Prefeito pela retomada de um projeto ousado para a cultura. Um projeto que seja digno de uma cidade que tem o título de Cidade da Cultura e que tem uma população que não se contenta com ações eventuais com bandas que reproduzem o modelo banalizado da indústria de massa. No Crato é preciso um projeto mais avançado e o cratense cobra isso.

Como você, acompanhando os 15 anos - 13 deles à frente da mostra - avalia a importância do evento para a região do Cariri? Qual foi o contexto de criação da Mostra Sesc Cariri?

Ainda na Fundação Cultural J. de Figueiredo Filho eu pensava numa proposta que abraçasse a realização de um festival no Crato, uma ideia que pude dar forma depois que ingressei no Sesc, em 1998. Apresentei a proposta e ela foi melhor estruturada por meio do projeto Desenvolvimento e Consolidação do Teatro no Cariri, que elaborei em parceria com Sidnei Cruz (na época, técnico em teatro do Departamento Nacional do Sesc). Inicialmente, o principal objetivo era estimular a produção teatral na região, proporcionando o desenvolvimento dos artistas e a participação do maior número possível de grupos, espetáculos, artistas, estilos e visões distintas no fazer cênico, fossem locais, estaduais, nacionais ou internacionais. A proposta era incentivar a troca de informações, ampliar o campo de referências e contribuir para a comunhão dos que fazem teatro no Ceará. Ampliamos as linguagens e trouxemos para a Mostra ações nos diversos segmentos artísticos como literatura, música, tradição, cinema e artes visuais. A partir desse conceito, surgiu a Mostra Sesc Cariri de Teatro, passando à Mostra Sesc Cariri das Artes, numa parceria com a Secult Ceará e em seguida, à Mostra Sesc Cariri de Culturas, que hoje abrange essa diversidade de linguagens e ações que se espalham por toda a região. A Mostra se constitui como uma ação fundamental para o Cariri, irrigando a região com o que há de mais instigante no panorama artístico nacional e em alguns momentos internacionais. Nesse sentido, ela oportuniza o intercâmbio das artes, dos artistas e das comunidades locais, proporcionando formas de difusão e valorização das culturas, fomentando e difundindo as práticas e os saberes locais. Ela assume o desafio de se inserir nos diversos municípios que compõem a região, mantendo a sua capacidade de renovação com o compromisso de atrair, cada vez mais, investimentos e esforços que possam se traduzir em políticas de cultura. Seu principal objetivo é injetar investimentos na região para através e para a cultura, uma vez que vemos que alguns espaços cênicos surgiram nesse movimento como o Teatro Sesc Patativa do Assaré, Teatro Violeta Arraes da Fundação Casa Grande, Teatro Marquise Branca, além de termos o aumento de leitos, serviços e estabelecimentos comerciais, como bares e restaurantes diretamente ligados à dinâmica que a Mostra proporciona.

Houve mudanças significativas nesses 15 anos de história da cena cultural da cidade - seja da parte da tradição, seja com grupos de arte contemporânea? Que mudanças você percebe e no que a mostra influenciou?

Percebo um momento de elevados níveis de consciência artística, quando as pessoas estão em busca de maiores e melhores critérios para organização dos seus trabalhos, uma vontade coletiva de cada vez mais qualificar as suas ações. Entretanto, percebo também que, apesar dos esforços investidos, as dificuldades continuam limitando a expansão do setor, dificuldades que estão presentes em todo o país e se expressam com maior ou menor intensidade nos lugares. Implementar políticas culturais no Brasil, diante de tanta riqueza e diversidade, é sempre um desafio. Temos um histórico tímido de políticas sistematizadas e regularizadas no âmbito da cultura. O campo da cultura ainda está em ajustes. Os orçamentos são restritos para dar conta de todas as demandas, o que termina por fortalecer a indústria cultural protagonizada pela grande mídia. Precisamos pensar a cultura a partir de outra lógica que não a economicista. O retorno dos investimentos em cultura não se traduzem, nem podem se traduzir, em lucros financeiros. São investimentos na transformação humana com fins sociais. Toda política pública deveria ser, acima de tudo, uma política cultural, e, nesse sentido, uma política social. Precisamos avançar na salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro, revigorando e fortalecendo o diálogo permanente com as nossas manifestações tradicionais. É também por meio dessas tradições, enquanto espaço aberto para a reflexão e a consciência, que a cultura pode contribuir de maneira significativa para o engrandecimento humano e para o desenvolvimento social sustentável.

Quais eram os pontos chaves da programação da mostra, de que forma foi pensada e modificada ao longo das edições e o papel dela ainda hoje?

O projeto nasceu da necessidade de se criar um espaço de convivência entre artistas e apreciadores das artes. Iniciada em 1999 como Mostra Sesc Cariri de Teatro, sei que o projeto foi crescendo, incorporando novos parceiros e ampliando sua abrangência para além das artes cênicas. Passa a se chamar Mostra SESC Cariri de Culturas, incluindo todos os segmentos das artes e ações culturais da região do Cariri, que se divide em núcleos: Artes Cênicas, Música, Literatura, Artes Visuais, Audiovisual, Meio Ambiente e Ações Formativas. Porém, cada um deles se inter-relaciona com os demais, através de diversos encontros multidisciplinares, estimulando os intercâmbios entre o público e artistas de diversos campos.

São diversos grupos artísticos que anualmente compõem a Mostra Cariri realizada pelo Sesc, vindos de diversas localidades do país e fora dele na perspectiva de difundir seus fazeres e saberes. Além de apresentações, momentos de formação e reflexão sobre os caminhos da arte e da cultura, no Cariri e no mundo por meio de realização de seminários. Pela capacidade de atender novas demandas, estimula o comércio local com serviços diretos e indiretos, o turismo cultural e a difusão da produção cultural e artística por meio dos encontros realizados, incorporando novas ações e dialogando com novas ideias. Coordenei durante 13 anos, sempre com muitas transformações, o filho está criado e bem cuidado, agora tem que continuar correndo a antena do mundo para ganhar outros ares, penso que ela está consolidada, a receita está pronta é pegar os ingredientes colocar no caldeirão efervescente do Cariri, coisa que o Sesc conduz com muita maestria.

FÁBIO MARQUES
REPÓRTER

Fonte: Diário do Nordeste



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