Tristeza e medo ainda acompanham a velha Exu que Gonzagão pacificou (Parte 2)


Numa sociedade regida pelas leis da honra, Jusiê enfrentou resistência até mesmo dentro de casa após escapar da emboscada. "Preferia ver meu filho morto", disse sua mãe, Rosemira, ao ver seu rosto deformado.

Rosemira é sobrinha do coronel Romão Sampaio, morto no tiroteio de 1949. Romão, por sua vez, era filho do coronel Romão Filgueira Sampaio, intendente de Salgueiro em 1867 e primeiro prefeito da cidade (1892-95), que esvaziou o poder do coronel Manuel de Sá – um ex-coletor de impostos da Coroa portuguesa no Semiárido, descendente de dom Diniz, rei de Portugal, e da rainha Isabel, da Espanha.

No Planalto
Os descendentes de Bárbara de Alencar correram o mundo e atuaram em papéis importantes na história do Brasil. Da matriarca descendem republicanos e monarquistas, getulistas leais e adversários ferrenhos de Vargas, intelectuais do Partido Comunista e generais do regime militar, aliados de Lula e tucanos, gente da esquerda e da direita. Raquel de Queiroz, autora de O Quinze, não esqueceu da matriarca ao idealizar Maria Moura, a protagonista do romance. Ela própria, Raquel, como Bárbara, foi presa política, na ditadura Vargas, em 1937.

Foi em outra ditadura, em 1964, que um descendente de Bárbara chegou à Presidência. Ao assumir o governo, o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco recebeu carta de Antoliano Alencar, de Exu, pedindo que intercedesse por outro parente: o então governador de Pernambuco, Miguel Arraes de Alencar, adversário do novo regime. "Nunca tive, não tenho e Deus me livre de ter tendências comunistas. Espírito conservador, feliz herança de nossos ancestrais que guardo e conservo como joia de valor inestimável, aqui estou perante o cidadão Humberto de Alencar Castelo Branco pedindo que interceda a favor de Miguel Arraes de Alencar, para que se conserve intacta a lealdade e a coragem com que sempre agiram os Alencar de uns para os outros", escreveu.

"Não peço a defesa de Miguel político, homem de Estado, mas a defesa da raça Alencar no Brasil de que V. Exa. é a expressão mais legítima", completou. "As Forças Armadas cumprem o seu dever com independência, bravura e altivez. No dia primeiro depõem do cargo de governador de Pernambuco e prendem um Alencar, mas depois, por que põem na Presidência da Republica um Alencar? Porque os Alencar são leais e sinceros."

Hoje, os Alencar de Exu não veem com bons olhos a parceria do governador de Pernambuco, Eduardo Campos, neto de Arraes, com Zilclécio Pinto Saraiva, chefe dos Sampaio-Saraiva. Na cidade, os partidos nacionais são ofuscados por dois grupos políticos: o Boca Branca, da família Alencar, e o Boca Preta, dos Sampaio e Saraiva.

Formalidade
Em época de eleição, PT, PSDB, PSB, PMDB ou DEM são siglas que só cumprem uma formalidade no registro dos candidatos. Um Alencar ou Sampaio pode mudar do PT para o DEM sem traumas. Mas nunca passar de Boca Preta para Boca Branca, ou o contrário. Embora os Alencar gostem de divulgar a história de que o Barão de Exu libertou seus escravos bem antes da Lei Áurea, foi a família Sampaio que ficou associada ao eleitorado negro, pobre, de Exu. O coronel Romão, morto no tiroteio de 1949, é considerado o pai do Boca Preta. Parentes do coronel dizem que, agora, a divergência com os Alencar só ocorre dentro das regras democráticas. O atual prefeito, Leo, do PTB, é Saraiva.

Se o acordo de paz entre as famílias não tivesse sido selado, a luta poderia se exaurir por decisões tomadas no cartório de registro de civil da cidade. Pais de família registravam os filhos com o sobrenome do clã rival ou evitavam colocar os seus próprios sobrenomes nos recém-nascidos para garantir a "neutralidade" das crianças. Três irmãos de Jusiê Sampaio foram registrados como Alencar, orientados por um tabelião. A filha dele, Jaciane Queiróz Peixoto, hoje professora, não tem o sobrenome Sampaio.

Em Exu, a geração anos 1980, hoje na faixa dos 30 anos, vive entre a memória de sangue dos mais velhos e a expectativa de um desenvolvimento que só é realidade em cidades médias como Salgueiro e Petrolina. Foi para lá que muitos jovens das famílias Alencar e Sampaio foram em busca de trabalho no comércio formado em volta dos grandes projetos do governo federal. Neto de Romão, Alexandre Saraiva Sampaio, 35 anos, observa que em Exu não há agricultura forte nem indústria. O comércio vive dos recursos do Bolsa-Família e a prefeitura, do Fundo de Participação dos Municípios.

Na avaliação de Alexandre, a música de Luís Gonzaga, que no passado ajudou a pacificar as duas famílias, agora poderia garantir dias melhores para os moradores. "Deveríamos explorar o ícone Luiz Gonzaga", afirma. "O berço do forró é aqui", ressalta. Alexandre diz que o museu dedicado ao Rei do Baião está nas mãos da família de um empresário do cantor. Reclama que o axé e outros ritmos "estrangeiros" tomaram o espaço da sanfona do Rei do Baião. Alega que só a música de Luiz Gonzaga é capaz de "agregar valor" e acabar com o clima de angústia do pós-guerra. "É como se agente vivesse perto de um vulcão adormecido. Aqui, uma palavra pode causar um impacto muito grande."

A mesa onde Luiz Gonzaga tentava resolver o conflito secular está na antiga casa do sanfoneiro, em Exu. "Ele sempre foi uma pessoa de barriga cheia, de luxo. O luxo dele era a comida", lembra Raimunda de Sale, 68 anos, a Mundica, sua fiel cozinheira.

Ela conta que Gonzagão convidava em separado representantes dos dois clãs. "Só na hora do jantar os Sampaio sabiam da presença dos Alencar e os Alencar, dos Sampaio", diz.

A história do lento processo de paz, que teve Mundica como uma das principais narradoras, envolveu até o presidente em exercício Aureliano Chaves. Em 1981, Gonzagão surpreendeu Aureliano no saguão de um hotel em Belo Horizonte, ao tocar a música Boiadeiro. Chaves – que tinha fazenda em Minas Gerais – foi cumprimentá-lo e o sanfoneiro pediu apoio para acabar com a luta de famílias.

Segundo Mundica, terminada a guerra de clãs, Gonzagão compôs Prece por Exu Novo. Essa foi uma das últimas entrevistas de Mundica. A cozinheira de Gonzagão morreu em fevereiro.

Fonte: O Estado de S. Paulo



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