Barbalha (CE): Os guerreiros ébrios da tradição

O sacrifício é sagrado, a cachaça é profana. A máxima da união entre o sagrado e o profano que permeia o carregamento do Pau da Bandeira de Santo Antônio, em Barbalha (a 553 km de Fortaleza) está em qualquer estudo sobre o assunto, nas linhas de aberturas dos repórteres que acompanham o cortejo e, até mesmo, incorporada ao discurso dos carregadores. Ainda que desgastada, é, de fato, o que melhor define o ato de martírio a que são submetidos os cerca de 150 homens que anualmente arriscam-se em um ritual religioso tenso, doloroso, mas, também, repleto de excessos.

Ao passo que a multidão que se amontoa no centro histórico de Barbalha embalada à carros de som remete à de festejos como o carnaval, a entrada dos carregadores na Cidade, devolve-nos a uma realidade quase medieval, com homens recobertos de lama, carregando nos ombros um mastro que, em média, pesa mais de duas toneladas. Este ano, um jatobá medindo 23 metros. "Aqui, tudo é uma família só. Nosso papel é esse. É preciso ter fé, que Santo Antônio dá força e coordena para não ter acidente", diz o carregador Isaac Santos de Andreza, pedreiro, de 25 anos, que desde os 15 participa do cortejo.

Ritual
No último domingo, dia dois de junho, o grupo começou a se reunir cedo da manhã no Sítio Flores, há seis quilômetros do local onde o mastro seria hasteado. O tronco foi cortado dia 16 de maio, e descansava, já sem casca, na chamada "cama do pau", onde permaneceu secando por pelo menos 16 dias antes do carregamento. A cachaça e a lama banham os carregadores, enquanto aguardam a ordem do capitão do Pau, Rildo Teles, para darem início ao cortejo.

"Eu entrei nesse cortejo como todo barbalhense que se preza, que é católico, que é devoto de Santo Antônio. Já está no sangue. Sempre quando você é jovem, você tem aquela vontade, mesmo quando é adolescente, você desperta aquela vontade de participar desse evento. Não se trata de uma festa profana, como muitas reportagens falam. Ela é uma festa religiosa, cultural", afirma um dos coordenadores do cortejo, Edvan Pereira da Silva, de 48 anos, enquanto aguarda a saída.

Este ano, devido a um atraso no término previsto para a missa à Santo Antônio, que é rezada na Igreja Matriz, a qual capitão Rildo estava presente, a ordem para o início do carregamento veio por telefone, e o cortejo foi, inicialmente, liderado por Edvan. "Juntamente com o capitão nós temos uma equipe de coordenação. Na ausência dele, essa equipe tem a incumbência de tomar posição para evitar qualquer incidente, qualquer situação que, por ventura, venha a acontecer", explica.

E os acidentes, realmente, acontecem. Embora o cortejo deste ano tenha acabado sem grandes machucados, não são raros os relatos sobre os "mutilados do pau". Pessoas que têm membros esmagados ao serem surpreendidos por uma derrubada. São duas toneladas nas costas de homens dormentes pela cachaça que se esforçam para avançar com o cortejo na estrada. Na base do troco, mais grossa e pesada, vão os mais fortes e experientes. Na retaguarda, cordas esticadas para todos os lados são amarradas a parte fina do tronco e seguradas por carregadores, que têm a incumbência de direcionar o cortejo e segurar o andamento nas ladeiras.

Aos gritos e sob forte tensão, os coordenadores seguem à frente do cortejo, motivando, "tá bonito, tá bonito", pedindo força, "êôôôô", e tentando direcionar o grupo. Da estrada carroçável que dá acesso ao sítio, eles seguem para uma pista de asfalto secundária e para a Avenida Paulo Sampaio, rumo ao centro histórico. A tensão aumenta quando o cortejo perde o eixo, cambaleia para a esquerda ou a direita. Dezenas de pés beiram o acostamento, arriscando um tropeço seguido de um sério acidente. O som seco de quando o pau despenca na pista é seguido de gritos e carregadores ao chão ou sentados sobre o tronco. Assustador para quem desconhece.

A tensão do carregamento é liberada com brincadeiras que ora parecem de extrema molecagem, ao baterem uns nos outros com garrafas pet, pedaços da casaca do pau ou ao escolherem uma vítima para derrubar e recobrir de areia e lama; ora violento, com tapas e voadoras, discussões falsas, que são, via de regra, seguidas de abraços. Todos bem, o cortejo descansa alguns minutos, bebe, se banha em baldes de água deixado nas calçadas pelos donos das casas por onde passa, e seguem.

Modificações
Ao longo dos anos, uma série de mudanças foram instituídas ao cortejo, para reduzir os riscos ou para favorecer o "espetáculo" ao público. Este ano, por exemplo, o cortejo gerou protestos de uns e espanto de outros, pelo ritmo que foi dado ao carregamento. Às 18 horas, o Pau já estava erguido na Praça da Matriz. Em 2012, o hasteamento aconteceu por volta das 23 horas. Entre as criações instituídas ao longo dos anos como medidas disciplinadoras, estão, por exemplo, a carroça com a "Cachaça do Vigário", que acompanhava o caminho dos carregadores com um barril de aguardente.

"O barril foi instituído para evitar acidente, porque as pessoas levavam cachaça em garrafa de vidro", pontua o advogado Josep Malma de Sampaio, filho do prefeito Fabriano Sampaio, que incentivou a mudança. "Hoje a carroça é mais folclore, porque já existem as garrafas pet e cada um leva a sua", completa.

Um grupo de carregadores "profissionais", conta Josep, também era mobilizado na década de 1970 a pedido do prefeito para ajudar e diminuir os riscos. "O pessoal bebia muito, se excedia, os mastros, pelo que contam, era maior que os que são carregados hoje. Ele arrumava pessoas contratadas para se infiltrarem no Pau da Bandeira, estando sóbrias, para que diminuísse os acidentes. Mas o carregadores não permitiam isso. Se soubessem, eles tiravam. Os caras tinham que passar despercebido, iam para reuniões. Hoje isso virou um procedimento já comum e aceito", revela.

Chegada
O cortejo do último domingo chegou a rua do Vidéo, que dá acesso à Matriz, por volta das 16 horas. Um buraco medindo quase dois metros era o destino final. Um pouco mais recuada, em meio à multidão, já havia sido cravada ao chão a máquina que ajuda a hastear o tronco. Outra questão de segurança. "Na época (década de 1970), Padre Eusébio, que hoje é monsenhor, disse que não teria mais condições de ficar responsável pelo Pau da Bandeira porque era um perigo de acidente muito grande na hora do hasteamento. Meu pai (Fabriano), como prefeito, para que a Igreja continuasse corresponsável, pediu ajuda a Mestre Pedro Batista (mecânico e inventor respeitado na região, casado com uma sobrinha do Padre Cícero), que desenvolveu um sistema de cabo de aço para ajudar a levantar e diminuir esse risco", contextualiza Josep. Antes, o pau era levantado apenas com um sistema de tesouras de varas cruzadas, que hoje apenas auxiliam o processo.

Ainda assim, foi preciso toda atenção dos carregadores no processo, guiando o tronco com as tesouras - para que não pendesse sobre as centenas de pessoas que se amontoam em volta - até que estivesse perpendicular e acomodado no buraco. Terra e pedras fecham o restante do buraco e dão sustentação ao mastro, com a altura de um prédio de sete andares. No topo, a bandeira do padroeiro. "Mais um ano, graças a Deus, graças a Santo Antônio", ouvia-se.

FÁBIO MARQUES
REPÓRTER ENVIADO A BARBALHA 

Fonte: Diário do Nordeste



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