Jornada proustiana no Cariri

Resmungo, cantoria, silêncio e rangido. Escambo de monossílabos garimpados no oco do dia, a bordo do caminhão ou enfiado no mato. No romance Big Jato, o cearense Xico Sá varre ladeiras e veredas do Cariri. No embornal da narrativa, um conjunto de sonoridades. A fala do povo, a reza, o ruído do motor, as difusoras de rádio e, principalmente, os Beatles. Um retrato da região, pródiga no cozido do arcaico com a novidade, imagem que encontra guarida nos estrangeiros que traficavam fósseis.

De carona na boleia do caminhão limpa-fossas, o Big Jato do título, que recolhe os dejetos de uma cidade que cresce ao ritmo da batuta do “milagre econômico” dos militares, acompanhamos as transformações dos sentimentos do menino. Ao lado do pai, o “velho”, o garoto entende o que é o mundo. E tira as dúvidas mais doloridas. A certa altura, atira a pergunta: pai, o papa caga? Sim, meu filho, até ele, responde o homem atrás do volante.

Painel afetivo de época, o roman à clef, como o próprio autor sublinha, é um acerto de contas com a danada da infância. “Suassuna diz que tudo que a gente escreve de verdade não passa desse acerto com o menino”, diz Xico em entrevista a O POVO. “Nelson Rodrigues vai na mesma linha: morremos aos 13, 14 anos, o resto talvez não importe muito.” Habituados com a prosa satírica, Big Jato apresenta um Xico Sá lírico que maneja com destreza o riso e o choro, a piada chula e a imagem singela.

A seguir, entrevista com o escritor, que lança Big Jato em Fortaleza no próximo dia 16 de dezembro, no Centro Dragão do Mar. Nela, Xico conta também que o romance vai virar filme, em 2013, sob direção de Cláudio Assis.

O POVO - O futebol é um dos temas fortes que atravessam o romance, que vai, aos poucos e recorrendo a muitos detalhes, desenhando um pequeno painel afetivo no Cariri dos anos 1970. Houve a preocupação deliberada de abranger alguns temas e não outros? O futebol, por exemplo, que é pouco explorado na ficção brasileira.

Xico - Falo de raspão da Copa de 1970, quando o narrador diz que Pelé era um grito de gol em branco e preto. Ainda com sete anos, não sabia direito do que se passava naquela pequena tevê na praça pública de Nova Olinda. Fui ter noção dos gols na coleção que fiz, meses depois, nas figurinhas do Chiclets Adams. Já a Copa de 74, a do carrossel holandês, está bem nítida no livro, foi um ano em que arranquei muitos dentes e já estava ligado no jogo da existência.

O POVO - Na introdução, o texto fala: “Tudo isso estava muito guardado. Agora emerge por força superior”. Qual foi o estopim da história da escrita desse livro especificamente?

Xico - Rapaz, o livro nasceu da memória dos barulhos do Cariri, do bodejo dos loucos nada loucos, dos gritos de amor no cabaré de Glorinha (Crato), do motor do Fenemê – uma zoada equivalente à terceira venérea de um homem como se dizia no tempo em que meu pai teve um até virar com uma carrada de rapadura na Serra do Quincuncá, no Cariri, uma misteriosa e assombrada ladeira da região. Tento reproduzir essa confusão toda na narrativa. O que Proust foi com o cheiro daquele bolinho fresco francês, eu tento ser com a bagaceira e a barulheira nordestina.

O POVO - Big Jato é uma espécie de acerto de contas com a raiz caririense?

Xico - Sim, eis um belo entendimento do que digo no livro. Suassuna diz que tudo que a gente escreve de verdade não passa desse acerto de contas com o menino. Nelson Rodrigues vai na mesma linha: morremos aos 13, 14 anos, o resto talvez não importe muito como relato existencial, como estranhamento, como estrangeiros de um vale perdido, no meu caso, e graças a Deus, o Cariri.

O POVO - Sua obra até aqui era formada principalmente por narrativas curtas (contos e crônicas). Embarcar numa história de fôlego mais comprido, como o romance, implicou em que tipo de dificuldades?

Xico - E se você visse o que escrevi. Foram mais de mil páginas. É que depois apliquei a razão cinematográfica do corte – talvez já facilitando a vida do diretor Cláudio Assis, com quem já colaborei no filme Febre do Rato e vai filmar em 2013 o meu livro. É lição daquela história de Graciliano Ramos, o escritor que mais admiro, que compara a escrita à luta das lavadeiras batendo a roupa na pedra da beira do açude. Deixei vivo, no entanto, um certo barroquismo, um certo sebastianismo, creio que o Nordeste é uma ficção, como na música do Belchior, uma ficção cujo embate é o seco e o molhado. Vive-se num sonhando-se com o outro.

O POVO - A partir de um registro que alterna lirismo e humor, Big Jato constrói um quadro num Cariri que mistura influências do rock e da religiosidade. Por que a escolha de situar o romance nessa época e nesse lugar específicos?

Xico - Foi o período mais rico. Não quis escrever um romance inteiramente autobiográfico, eu persigo o delírio sobre o que aconteceu de fato, talvez por uma bela vingança, uma facada na realidade que tenho que suportar como gente e cobrir como jornalista – há uma diferença incrível entre as duas coisas e eu rio disso. Fosse eu um francês metido a merda, diria que escrevi um roman à clef, romanaclê, um romance com chave, donde há uma apropriação da realidade do meu tempo e lugar para tornar uma ficção, uma história de trancoso, como se diz na nossa terra. É hora de valorizar talvez a região mais fantástica e genial do universo, a nordestina. Sou vaqueiro de peito aberto, sem gibão ou artifícios pop, nessa saga pós-apocalíptica.

O POVO - Um dos trechos mais bonitos do livro narra o momento em que filho e pai vão despejar bem longe os dejetos recolhidos e, no rádio da caminhonete, toca Beatles - é uma imagem recorrente, forte, do pai à procura no dial das músicas da banda inglesa. A cena é experiência vivida ou relato ficcional?

Xico - É real, mas não ocorreu com meu pai. Aconteceu na rua Santa Luzia, em Juazeiro do Norte, quando Carlos, filho do seu Waldemar, dono do bar mais bacana da cidade, seria Alvorada (esqueci o nome), me apresentou a coleção de vinis dos Beatles. Já curtia os “cabelim pastinha”, como o personagem do livro chama os rapazes de Liverpool, mas nesse momento foi incrível. Era a gente tomando uma, ouvindo os Beatles, e o caminhão do “Big Jatto”, com dois tês, um serviço de limpa-fossas homônimo de Juazeiro, limpando a merda da vizinhança. Big Jato, aliás, é um nome de vários limpa-fossas no Nordeste na época, quando começou a influência da língua inglesa - efeito Beatles e seriados da tevê? Mas antes que me esqueça, tudo não passa de mera coincidência.

O POVO - Big Jato trata dessa relação incondicional entre pai e filho, mas também de heroísmo. O leitor é tomado de amores pelo “velho”, pelas ranzinzices, pelo silêncio, que só encontra correspondência no próprio caminhão, o limpa-fossas Big Jato que range nas ladeiras de Desterro. A relação com seu pai serviu de baliza para construir esse personagem?

Xico - Aí você matou o enigma. O do barulho, do resmungo em vez da fala, da zoada como chave do Cariri que invento, da música entre a confusão e o silêncio, das locuções de Antônio Vicelmo, do fortíssimo rádio caririense que contava com Patativa do Assaré, com o forró do Seu Elói, tido e havido como o maior baile do planeta, um forró que mantinha 700 ferreiros de plantão apenas para fazer os triângulos da festa, tamanho era o estrago durante as noitadas. Sim, há um pouco do romance russo entre pai e filho, o Cariri é muito Ivan Turgenyev nesse sentido, principalmente o Sítio das Cobras, em Santana, onde vivi minha infância.

Serviço
Big Jato
Autor: Xico Sá
Cia. das Letras, 184 páginas.
Preço: R$ 33. 
Lançamento: 16 de dezembro, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (rua Dragão do Mar, 81 - Praia de Iracema).
Outras informações: (85) 3488 8608

Henrique Araújo

Fonte: O Povo

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