Você já queimou seu mendigo hoje?

O ser humano é mesmo uma criatura observadora, inquieta. Por conta da curiosidade inata, botou a grande roda da história pra rodar (antes mesmo que ele próprio inventasse a roda e a mentira), adaptou-se às desgraceiras da vida, e não foi dizimado pela força do ecossistema, conforme outros desafortunados seres rastejantes, voadores e aquáticos.

Porque tem perspicácia, o Homem peitou os vírus, bactérias, seres peçonhentos, ornitorrincos e a própria ignorância. Então, ele descobriu que os trovões no céu não eram as broncas dos deuses, que a Terra não terminava num enorme precipício, e que as sanguessugas não eram mais a melhor opção para se tratar febre ou loucura.

Um dia, num passado muito remoto, enquanto mirava os fenômenos da natureza inóspita, algum nosso ancestral cabeludo, amuado numa gruta úmida, presenciou um raio atingindo a relva seca, provocando um descomunal incêndio. Ao admirar tal mágica desgraça, cismou: “que maravilhoso seria seu eu pudesse também produzir faíscas flamejantes...” (foi com estas palavras que ele se referiu às descargas atmosféricas).

Daí começou toda a mística do Homem com o fogo, e que perdura até os dias de hoje. Vejo, por exemplo, pela janela de casa, que Dona Iolanda, minha senil vizinha, utiliza um isqueiro para atear fogo num montinho de lixo que ela juntou sobre a calçada. “Isto aí não pode, Dona Iolanda!”, repreendo a septuagenária incendiária de detritos.

Então, a partir da observação de um relâmpago, alguém começou a esfregar pedra contra pedra, caroço contra caroço, tíbia contra tíbia (naqueles tempos desprovidos de máfias das funerárias, havia muitos ossos e carcaças disponíveis sobre as planícies), graveto com graveto. Enquanto muitos debochavam dos experimentos (há sempre vários espíritos-de-porco torcendo para que os nossos projetos simplesmente deem errado), esta cavernosa e sonhadora criatura bípede relevou tanta inveja e persistiu nos exercícios de fricção.

Vocês sabem: água mole em pedra dura... De tanto insistir em atritar a madeira seca, eis que um aquecimento tal fez nascer a fumaça e uma labareda amarela que feria a pele, doía à beça, algo incrível que foi batizado “fogo”. Nunca antes na Pré-História daquele mundo, alguém fabricara relâmpagos, ou melhor, fogo.

Movidos pelo medo de serem dominados pelos mais espertos, outros Homens desenvolveram, aperfeiçoaram a técnica inflamável. A prática se difundiu largamente entre as tribos, em vários cantos do planeta, e o Homem finalmente dominou aquele milagre.

Com um baita norráu nas mãos, o ser humano percebeu que o fogo era mais poderoso do que se supunha no princípio. As chamas faziam mais que, simplesmente, queimar o mato seco. Maquiavélico — antes mesmo do nascimento de Maquiavel — o Homem amarrou uma touceira na extremidade de um porrete, criando assim uma ferramenta interessantíssima que foi denominada “tocha”. Com ela, poder-se-ia enxergar no escuro, espantar muriçocas, aquecer-se nas noites gélidas, afugentar predadores, caçar pequenos animais, amedrontar os algozes de outras tribos, capturá-los, machucá-los, destruí-los, por que não...

Quando alguém descobriu (provavelmente, uma mulher brincando de cozinhadinho) que carne de caça assada era muito mais saborosa do que em seu estado natural, eis que surgia o churrasco, uma das mais relevantes invenções da Humanidade, juntamente com o vinho, a penicilina, a camisinha e o sexo sem fins reprodutivos.

Mas deixemos de pilhéria e prossigamos neste sério ensaio etílico-filosófico. Um velho adágio adverte: com fogo não se brinca. Mas a inquietude do ser humano não é brinquedo. Trata-se de uma criatura que jamais se contenta com aquilo que tem. Confiante por ter dominado do fogo, o Homem deu a ele novas utilidades.

Queimou a argila. Confeccionou utensílios, potes, tonéis. Esquentou comida. Ferveu água do rio em vasilhames, tornando assim o banho muito mais agradável durante o inverno. Incinerou os membros mortos do clã para afugentar as moscas, os chacais e o mau cheiro. Tratou as feridas infectadas, flambando pústulas com o mister das brasas. Estancou sangrias difíceis. Cauterizou os umbigos dos nascituros.

Areia, fogo, calor: virou um vidro. Queimou pedras: nasceu o metal. Moldou lanças, espadas e demais instrumentos cortantes de se ferir os inimigos. Esquentou o azeite em caldeirões para despejá-lo no lombo dos invasores. Protegeu castelos. Manejou a dor. Torturou inimigos. Promoveu inquisições. Ameaçou físicos, matemáticos, filósofos. Destruiu em fogueiras toda sorte de bruxos entusiastas da ciência, inimigos políticos e mentecaptos sem qualquer valia social.

Notem aí: o Homem evoluiu, evoluiu, evoluiu. Pra frente é que se anda, não é mesmo?! E então... Tubos de ensaio. Alquimia. Poder. Alguém trouxe algo chamado pólvora. Pistolas. Garruchas. Rifles. Combustão. Lesão. Morte.

Indústria. Motores. Explosão. Velocidade. Borracha. Pneus. Automóveis. Aviões. Balas. Bombas despejadas ao léu. Cogumelos atômicos. Dizimaçãoem massa. Domínio. Epor aí foi...

Mas fogo também é diversão. Cana de açúcar. Alambique. Garapa. Água ardente. Porre. Fogo. Paixão. Sexo. Treponemas. Foguetes. Rojões. Vapores. Sauna. Tabaco. Erva queimada. Doidura. Fundí de chocolate. Obesidade. Diabetes. Velas. Velas de 7 dias. Cultos. Pregações. Rebanhos. Paz de espírito. Dominações sagradas.

Fiz toda esta retrospectiva para chegar, enfim, à notícia. Um dos passatempos prediletos dos jovens abonados da atualidade é atear fogo em gente que vive nas ruas, os segregados sociais. A prática malvada difundiu no país desde que o índio Galdino foi morto por um grupo de adolescentes entediados em Brasília, nos anos 90.

De lá pra cá, filhinhos-de-papai inculto-ociosos têm aperfeiçoado a técnica. A mais recente Farra do Fogo Urbano (será que poderíamos denominar assim a diversão destes mimados covardes?!) aconteceu novamente no Deéfi, onde um grupo de adolescentes sapecou dois mendigos que dormitavam à sombra de uma árvore. Cometeram o atentado com o mesmo sentimento da Dona Iolanda. No início era só brincadeira. Depois, virou faxina.

Então é isso, caros leitores: a vida é fogo. Desde a Pré-História.

Fonte: Revista Bula


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