Música: A reinvenção de Lira, Lirinha

Na enxurrada de artistas pernambucanos que tomaram de assalto a música pop brasileira a partir da década de 1990, havia um grupo que se destacava pela performance agressiva e teatral do vocalista. Tratava-se do Cordel do Fogo Encantado, banda inusitada até no nome, que juntava o som de muitos tambores e percussões, com o som de cordas e uma poesia fincada na terra, inspirada em João Cabral de Melo Neto (1920 – 1999). À frente do quinteto, recitando tudo com sotaque bem característico, estava José Paes de Lira, o Lirinha.

 Foram 11 anos, três discos e um DVD com o grupo, até que Lirinha, agora morando em São Paulo, decidiu tentar novos rumos. Sua saída do Cordel aconteceu em 2010, decretando o fim da banda. Foi mais de um ano que o cantor levou para se afastar do que tinha de Cordel, para criar um novo som. Chegou a excursionar com o amigo Otto por um tempo, antes de chegar às conclusões agora apresentadas em Lira (Independente). Mostrando seu lado mais rocker, o disco traz uma nova formação de banda, calcada basicamente em guitarras (Neilton, do Devotos), teclados (Bactéria, do Mundo Livre S/A) e bateria (Pupillo, da Nação Zumbi).

Soturno e intrigante, Lira intercala momentos de experimentação (Eletrônica viva) com outros mais pops (Memória), e mantém a veia poética cheia de imagens cinematográficas (Eu te vejo voltando pra casa trazendo nos braços as flores colhidas). “Meu trabalho anterior tinha uma base percussiva e era um objetivo meu manter essa característica, mas com uma ampliação dos elementos harmônicos, teclados, sintetizadores, guitarra, e uma poesia mais pessoal”, explica Lirinha, que faz questão de afirmar que nunca brigou os antigos companheiros de banda.

Segundo ele, a decisão de seguir sozinho foi mesmo estética. Para essa nova aventura, ele convidou Pupillo para ser seu produtor. Em conjunto, eles foram trabalhando cada elemento do disco em particular, desde a procura por um som específico de baixo (feito nos teclados) até as participações especiais. Entre elas, Lula Côrtes, responsável pelo mítico Paêbiru (1975), disco dividido com Zé Ramalho. O músico toca tricórdio (espécie de cítara marroquina) em Adebayor, homenagem ao futebolista africano Emmanuel Adebayor. “Ele (Lula) dizia: ‘Faz tempo que eu não toco’. Mas insistimos, ele gravou e a música ficou forte. A gente ainda ia gravar a voz, mas ele morreu uma semana depois que nos encontramos”, lamenta Lirinha.

Em compensação, Lira foi a oportunidade de Lirinha realizar um grande sonho, ter uma composição gravada por Ângela Ro Ro. A escolhida foi Valete (“vou te contar minha paixão por uma valete de paus, e ele vivia aqui na minha mão”), que conta ainda com os vocais de Otto. “Eu tinha uma música que ainda estava pela metade. Quando ela aceitou o convite, eu consegui completar o que faltava”, conta Lirinha lembrando das muitas farras que fez pelo Recife cantando Amor, meu grande amor e outras músicas de Ângela.

Num contraponto às 11 faixas que Lirinha canta com sua voz trágica e, agora, mais melodiosa, o disco encerra com My life, composição de João, seu filho de 9 anos. Longe das afetações das crianças prodígios, o pequeno, que mora no País de Gales com a mãe, enche seus versos (“eu realmente quero ser como meu pai”) de autenticidade. “Ele foi passar o Carnaval em Recife e, no meio do nosso ensaio, ele mostrou a música. Eu já botaria por uma corujisse. Ele é melhor do que eu”, admite o pai.

Ainda sem traçar uma rota certa para o futuro, Lirinha apenas tem certeza de que quer seguir tocando seu som. Fiel à história que construiu com o Cordel do fogo Encantado, ele fechou um ciclo pra começar um outro que fale mais sobre o que anda pensando, fazendo e sentindo no momento. “Numa carreira solo, a solidão é maior nas decisões e isso às vezes é ruim. Você fica com mais responsabilidades. Por outro lado, o positivo é poder ter essa coisa de fazer um caminho, escolher por si”.

Fonte: O Povo

Nenhum comentário:

Postar um comentário

AddThis