Com 'Recanto', Caetano tira Gal da mesmice. Mas é só


Quem escuta Recanto Escuro, canção que abre Recanto, a nova investida fonográfica de Gal Costa e Caetano Veloso, percebe já no início do disco o quanto a cantora se arriscou. O som pesado e eletrônico da faixa, prenúncio do que virá nas outras dez, é em tudo distante da produção mais recente da baiana, calcada em um repertório de standards da MPB. Com o álbum, uma criação sua interpretada pela amiga e colega de Tropicália, Caetano deu a Gal a chance de experimentar. De sair da mesmice. E ela de fato saiu. Mas é só. O problema de Gal permanece: ela perdeu a imaginação de intérprete que um dia teve, e se apóia apenas na técnica para cantar.

Em entrevistas para divulgar o disco, é isso que Caetano Veloso tem ressaltado: a precisão vocal de sua amiga. Esse canto preciso, diz ele, casaria bem com a frieza da música eletrônica. Isso é uma meia verdade - ou talvez menos que isso. Países onde a eletrônica já se incorporou à música popular há décadas têm contingentes de cantoras a povoar, das maneiras mais diversas, a paisagem sonora criada pelos computadores: trace-se um arco, digamos, da extravagante Kate Bush, que despontou nos anos 70, à melancólica Beth Gibbons, do Portishead, nos anos 2000, passando por Elizabeth Frazer ou Björk. As próprias cantoras jovens da música brasileira incorporam ruídos artificiais aos seus trabalhos já faz algum tempo, como um elemento extra que serve a múltiplas finalidades.

A frieza e a dureza da eletrônica, portanto, são aquelas que Caetano Veloso elegeu - são uma escolha conceitual, não uma necessidade. A certa altura, o músico pensou em batizar o disco de Segunda – sugerindo não apenas a continuação de Domingo, disco com que ele e Gal estrearam no mercado, em 1967, mas também chegada de uma nova, uma segunda Gal. Infelizmente, contudo, não existe essa segunda cantora. Para aqueles que ouvem os discos dos anos 70 e 80, a Gal que surge em meio ao gelo e à dureza deste Recanto é apenas uma Gal diminuída às dimensões de sua voz, e sem qualquer força de intérprete.

É fácil perceber o uso frio da técnica em músicas como Sexo e Dinheiro, em que o canto de Gal se assemelha a uma ladainha de igreja, e a derradeira e chata Segunda (aquela que quase deu nome ao disco). Também se pode verificar o gelo pelo avesso em Autotune Autoerótico, faixa mais agradável que brinca com o software de ajuste de voz que alçou à fama a fraude Rebecca Black e se tornou mania entre cantoras como Ke$ha. Aqui, Gal se permite uma maior extensão vocal, embora o faça de modo nitidamente controlado, acompanhando a batida forte que soa entre versos como “Roço a minha voz no meu cabelo” (uma referência à cabeleira que é uma de suas marcas) e “Não, autotune não basta para fazer o canto andar / Pelos caminhos que levam à grande beleza”. O autotune pode não garantir a beleza, mas é ele quem, logo em seguida, no final dos versos “Americana, global, minha voz na panela / la / Uma lembrança concreta de plena certeza”, dá à voz de Gal efeitos que a própria não imprime.

Entre os pontos positivos do disco, está Miami Maculelê, uma faixa melodiosa que lembra tanto o funk carioca como os tambores da Bahia e que faz uma ode aos bons ladrões ao citar São Dimas e Robin Hood, além de uma reverência a Charles Anjo 45, de Jorge Ben. E Mansidão, que Caetano havia composto para Jane Duboc sob encomenda e agora resgata para o canto de Gal. Calma, menos truncada pela linha eletro-harmônica do disco, Mansidão é das suas músicas mais bonitas. Mas é mesmo uma exceção entre as onze faixas do CD. A exceção que comprova a teoria.

Goste-se ou não de Caetano Veloso, não se pode deixar de reconhecer que ele hoje persegue a experimentação com apoio de uma nova geração de músicos, incorporada a seu trabalho desde o álbum Cê, lançado em 2006, um ano depois de Gal gravar seu último disco, Hoje. Coproduzido por Moreno, filho de Caetano e afilhado de Gal, Recanto conta com uma base eletrônica de Zeca, outro filho do compositor, na música Neguinho, e com a programação de Kassin, amigo e parceiro musical de Moreno. Além da participação de nomes pouco conhecidos como Bartolo, um dos componentes do duo Duplexx. Aproximar Gal dessa moçada seria também um modo de repaginá-la. Mas, mais uma vez, o plano não vingou. Gal não deu o salto que poderia torná-la, de novo, uma referência.

Fonte: Veja

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