O câncer de Lula e as deficiências de todos nós - Por: André Forastieri*

No futuro, pretendo ser deficiente. Distante, espero.

A outra alternativa é morrer jovem. Ou cair fulminado por um derrame letal, na mais perfeita saúde, aos cem anos de idade, depois de uma noite de esbórnia e sexo ardente. Improvável, infelizmente. A convivência com pessoas de idade me convenceu que meu futuro é ir deixando de funcionar aos poucos. Vantagens e maldições dos avanços da medicina.

Vai parando de funcionar ouvido, olho, perna, intestino, glândula salivar, tireóide, memória - deficiências mil e tá lá o velhinho vivinho, aos trancos e barrancos, mas bate um coração. Custa em dinheiro, e custa em investimento emocional e em paciência para quem está por perto. Há ganhos também. A convivência com a fragilidade e necessidade humanas, na doença, deficiência ou velhice, ensina. Entre outras coisas, que deficiência não é acaso, é destino certo. Vai se preparando.

Parte de me preparar para meu futuro claudicante exige prestar alguma atenção no que acontece no mundo dos deficientes, e de vez em quando escrever sobre isso. É pouco, quase nada. É pouco de qualquer maneira o que faço por um mundo menos cruel. Mas meu interesse por meu próprio futuro é grande. Hoje, por exemplo, li com satisfação o título de uma reportagem: "plano federal de apoio a deficiente prevê renúncia fiscal de R$ 609 milhões". Veio acompanhado de uma foto de nossa presidenta beijando uma menininha com síndrome de Down, filha do jogador e hoje deputado Romário.


O nome marketeiro do pacote é Viver Sem Limite - Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Vai reduzir por decreto a alíquota de vários impostos que incidem sobre equipamentos voltados para deficientes. Mas o título é enganoso. Não, o tal plano também prevê "a inclusão social e a promoção da cidadania da pessoa com deficiência" (é tanto jargão que a gente já vai desacreditando de cara).

Na teoria, articula as ações de 15 ministérios e destina R$ 7,6 bilhões para os deficientes, nas áreas de educação, saúde e acessibilidade. De cara, é insuficiente. E na prática, vamos acompanhar de perto para ver o que realmente rola. Porque na prática, o grande business no Brasil é socializar problemas e privatizar soluções. Existe, por exemplo, uma lei que exige que toda empresa com mais de cem funcionários tenha uma cota para pessoas com deficiência. Ela é pouco cumprida e as empresas raramente são punidas por isso.

A presidenta podia botar lá a polícia pra bater na porta das 1000 maiores empresas do Brasil, por exemplo. Vai esperando sentado. Quando foi anunciada a doença de Lula, um bando de urubus gralharam: devia se tratar no SUS pra ver o que é bom. Besteira, claro. Lula representa exatamente o peão que ascendeu, e que hoje pode pagar por saúde, educação, churrasco etc. Os brasileiros não amam Lula porque ele é um brasileiro igualzinho a eles. Amam Lula porque é um self-made man à brasileira.

Entendem que ele enricou e, lá do alto, ajudou pelo menos um pouco os necessitados (atitude impensável para a elite tradicional brasileira, que, como vimos, não é solidária nem no câncer). Os valores tradicionais do american way of life - estude, trabalhe muito, suba na vida sem esquecer dos que precisam, e quem sabe você pode até algum dia se tornar o presidente da república - são perfeitamente incorporados por Luiz Inácio. O grande líder de massas virou essa quimera incompreensível, que ocupa todo o espaço político da esquerda à direita, se dá bem com toda gente, roubou as bandeiras dos conservadores, continua dando as cartas e só deixou para o tucanato o discurso moralista (e defensivo) da lei e da ordem.

Virou também espertalhão do marketing - essa de tirar foto com a mulher barbeando sua careca é de tirar o chapéu. Espero que dure bastante. O Brasil será mais monótono na sua ausência. Seria por princípio justo que Lula fosse obrigado a se tratar no SUS. Mas também Fernando Henrique, e qualquer ex-funcionário público, Armínio Fraga, Delfim Neto etc. Sem distinção de classe, que é feio. E seria justo que os filhos dos políticos frequentassem por lei creches e escolas públicas, como defendeu um dia Cristovam Buarque. Sentiriam na carne os problemas que a maioria dos brasileiros sentem, é a tese. Mas é regra difícil de impôr.

Já a deficiência vêm certeira para Lula, você e eu, para ricos, pobres e remediados. É mais democrática. O bolso de cada um faz diferença na hora do tratamento, de pagar os remédios, de comprar equipamentos especiais, da enfermeira, do acompanhante. Mas cego é cego, surdo é surdo, e a dor dói em você e em mim. Por isso, você e eu precisamos ficar espertos e cobrar que nossos governantes invistam cada vez mais e melhor para apoiar as pessoas com deficiência, crianças, adultos, velhos.

Não por solidariedade: por egoísmo. Nosso futuro está logo ali, virando a esquina...

*André Forastieri é jornalista e escreve no portal R7

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